José, o carpinteiro, teria que ir recensear-se em
Belém de onde era oriundo. Junto a ele, montada em um burro, viajava Maria em
avançado estado de gravidez, enfrentando uma viagem fatigante de mais de 150 km
desde Nazaré. Seu esposo se sentiu mais tranquilo quando, por fim, entraram na
cidade de sua família, pois trazia consigo a esperança de encontrar logo um
albergue, tendo em conta a condição em que se achava sua mulher. Porém, andaram
de casa em casa, e a todas achou cheia de gente. Acontece que, por causa do
censo, muitos belemitas regressaram desde os diversos pontos do país para renovar
sua inscrição nos cadastros romanos. Em vão buscou um lugar onde acomodar Maria
para que pudesse dar à luz a seu filho; não o encontrou. De repente viu uma
pousada. Ali se conseguiria seguramente alojamento. Porém, a decepção foi
enorme quando o proprietário lhe informou que não tinha nenhum canto
disponível. Por fim, José com Maria, que se movia pesadamente e que já sentia
as dores de parto, se dirigiu a uma gruta que servia de estábulo para os
animais e terminaram aconchegando-se dentro. Na solidão daquela gruta, Maria
deu à luz o seu primogênito, e o pôs logo em uma manjedoura, isto é, no
recipiente onde se coloca comida para os animais, que por sua forma alargada
lhe serviu de berço. Porque os homens a quem viria salvar lhe fecharam as
portas, o Filho de Deus terminou por nascer em um estábulo.
O Evangelho
relata isso?
Porém,
esta narração assim contada, e que temos ouvido e meditado inúmeras vezes,
especialmente ao chegar o Natal, levanta dois grandes problemas. O primeiro é
que não concorda exatamente com o Evangelho de São Lucas, do qual foi tomada.
Com efeito, este em nenhuma parte diz que Maria havia chegado a Belém quase a
ponto de dar a luz. O texto só afirma: “E aconteceu que, estando eles ali se
completaram os dias em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). Tampouco conta o Evangelho
que o casal haja andado de casa em casa e de pousada em pousada buscando
alojamento. Esta é uma simples dedução pelo fato inexplicado de que Maria tenha
dado à luz em uma gruta destinada para refúgio dos animais, e porque se afirma
que “não havia para eles lugar na hospedaria” (Lc 2.7).
A
imprudência de José
O segundo
inconveniente é a grande quantidade de perguntas que levanta: a) Se José vinha para uma breve prática
administrativa, e tendo em conta que naquela época não era obrigatória à mulher
apresentar-se no despacho do censo - porque bastava o chefe de família -, para
que levaria Maria até Belém? b) Como
foi tão imprudente de esperar até a última hora e viajar quando ela estava
quase a ponto de dar à luz? c) Como
homem justo e prevenido que era não, foi capaz de prover um lugar mais decente
para o parto de sua esposa, sabendo que o que viria ao mundo era nada menos que
o Filho de Deus? d) Se ele era de
Belém, e voltava à sua própria cidade, como é que não tinha uma casa onde se
alojar? e) Considerando que para os
povos do oriente a hospitalidade era um dever sagrado, no qual estava em jogo a
própria honra, não parece estranho que ninguém abriria as portas a José, nem
sequer um parente, mesmo vendo o estado de Maria?
E tudo
por uma palavra
Assim
colocadas as coisas, estas perguntas indicam de imediato que estamos em um beco
sem saída. Porém, todo o problema reside em que temos feito uma leitura
equivocada do Evangelho à qual temos acrescentado, muito de imaginação sobre o
que o texto conta. A culpa está em uma palavra que foi mal traduzida e criou a confusão,
e assim estimulou a fantasia de gerações de leitores. Trata-se do vocábulo
grego kata,luma (Katályma), que a maioria das Bíblias traduz por hospedaria,
pousada, albergue. Ao traduzir desse modo esta palavra, a frase do Evangelho
diz que “não havia para eles lugar na hospedaria”. Porém no grego bíblico esta
palavra tem também - e primariamente - outro significado, que é o de aposento, quarto,
peça de uma casa, ou seja, uma parte especial da casa, mais bem separada, ou
reservada.
A katályma
O que era
realmente a katályma, na qual não havia lugar para eles? Para entender bem o
sentido do Evangelho de Lucas devemos nos situar no ambiente da Palestina onde
as casas não constavam de vários quartos como podem ter as nossas atualmente. Com
a precariedade da edificação de então, as residências tinham tão só uma peça
central onde havia de tudo: armários, ferramentas, assentos, despensas,
cozinha. E onde, chegada a noite, se estendiam as esteiras para o repouso
noturno, cada um em seu lugar preferido.
Esta peça
central era, pois, o pequeno mundo doméstico ao redor do qual girava toda a
vida do lar e o movimento das pessoas, mais ou menos como ainda são os lares de
muitos de nossos ambientes rurais. Porém, além da sala principal, as casa
tinham também algum ambiente menor, reservado, às vezes empregado como depósito
ou para eventuais hóspedes, com separadores anexados para maior privacidade.
O quarto
das parturientes
Este
quartinho anexado servia, sobretudo, para quando na casa havia alguma
parturiente. Porque em Israel, quando uma mulher dava à luz um filho ficava
impura durante 40 ou 80 dias, segundo fosse menino ou menina, por causa da
perda de sangue que havia sofrido. A Lei judaica prescrevia que os objetos que
ela tocava, a cama onde repousava - inclusive qualquer lugar onde houvesse
sentado - ficavam impuros. E se alguém tocasse a parturiente, ou entrasse em
contato com algum utensílio tocado por ela, também ficava impuro (Lv 15.19-24).
E para os judeus, uma pessoa impura ficava isolada socialmente, diminuída
(desacreditada) diante de Deus e dos demais; não podia ir ao Templo, nem
relacionar-se com ninguém até que terminassem os ritos de purificação que eram
complicados e levavam seu tempo. Daí as precauções que se tomavam em cada
parto, e o por quê de se fazer residir na katályma, ou seja, em um quarto
separado da casa, e não no ambiente comum, a que acabava de ser mãe.
Assim
tudo é mais claro
Agora
suponhamos por um momento que o evangelista Lucas quando escreveu que não havia
lugar na katályma, não estava pensando em uma hospedaria, como traduzem normalmente
as Bíblias, mas sim em uma peça particular de uma casa, que é a primeira
possibilidade que proporciona esta palavra grega. Então, de imediato, se
clareia todas as perguntas, o texto evangélico se torna mais coerente, e a figura
de José volta a adquirir confiança como pai responsável e esposo prudente. Comecemos,
pois, a ler agora todo o relato do Evangelho à luz desta nova explicação, sem
interpretações arbitrárias nem acréscimos espúrios e fantasiosos.
Com uma
mulher em estado interessante
Havendo
se inteirado de que o imperador de Roma havia ordenado um censo, José, que
momentaneamente residia na Galiléia, decidiu voltar a Belém, visto que era dali
(Lc 2.4). O mais natural teria sido deixar na Galiléia a sua jovem esposa já
que não era necessário que comparecesse diante das autoridades do censo. Entretanto,
mesmo apesar da condição em que se encontrava, decidiu levá-la consigo, pois pensa
em radicar-se definitivamente em Belém, o que é lógico, tendo-se em conta que
ele era desta cidade e que aqui tinha seus parentes, sua casa e suas posses.
Tendo ele domicílio em Belém, então é justo pensar que traria Maria para que se
estabelecesse em sua própria casa e ali vivessem. Para isso se puseram em
marcha com tempo, com a prudência dos justos, e para evitar as dificuldades do
último momento. Dadas as circunstâncias, a viajem deve ter demorado uns dez
dias pelo caminho longo e acidentado de então, porém, vários meses antes do
parto.
A
intimidade de uma gruta
Neste
ponto afirma o Evangelho que “enquanto eles estavam ali, se completaram os dias
em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). No entanto, era a época do censo e muitos
belemitas que tinham vindo de todas as partes enchiam a cidade instalados nas hospedarias
e em todas as casas particulares. Também Maria e José receberam e alojaram em sua
casa muitos parentes e amigos, de modo que ficou cheia.
Acontece,
então, que chega a hora do parto e ambos percebem que não havia lugar onde Maria
poderia dar à luz digna e discretamente, sem incomodar e sem ser incomodada, e
sobretudo sem transformar em impuros todos os que estavam na casa. Ou seja, não
havia lugar nem mesmo na peça separada da casa, na katályma. Por isso, sem
ofender a nenhum de seus parentes, se retiraram à gruta-estábulo que todas as
casas de Belém tinham (e ainda têm), onde acolhiam os animais. E ali, em uma
gruta de sua própria casa, adaptada como refúgio e arrumada por José da melhor
forma possível, pouco depois Maria deu à luz a um menino. As demais mulheres a
ajudaram a envolvê-lo em panos. E como berço tomaram uma pequena manjedoura (caixão
onde se punha o alimento para os animais domésticos), o limparam bem, lhe
puseram palha nova e cobriram com panos. É isto o que se deduz se lemos o texto
que, corretamente traduzido, agora diz: “E deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o
em panos e o deitou numa manjedoura, porque não tinham lugar na sala” (Lc 2.7).
Para eles,
não havia lugar
Por isso,
na continuação o evangelista Lucas - sempre preciso em seus detalhes -
esclarece que não havia lugar, porém só “para eles”. Isto indica que para todos
os outros tinha um lugar qualquer para descansar, já que as camas na Palestina
não eram senão uma esteira estendida no solo. Porém, para eles, que deviam
observar as prescrições da Lei judaica referentes à impureza ritual, para eles
não. Poderíamos acrescentar ainda: para eles, tão determinados a não incomodar,
para eles, tão delicados e tão persuadidos do mistério que guardavam zelosamente;
para eles não haveria lugar no meio do vaivém, do barulho e da mistura que
reinava em toda a casa.
Concluímos,
então, que foi em uma das grutas destinadas para estábulo da casa de família de
José em Belém, o lugar onde aconteceu o nascimento do Messias. Concluímos que no
grego de Lucas a palavra katályma significa o quarto (peça) separado de uma
residência, e não uma hospedaria ou pousada, o que é confirmado pelo episódio
da última ceia. Em Lucas 22.11, quando Jesus dá as instruções a Pedro e João
para irem até uma casa da cidade e preparar a Páscoa, lhes indica: “E direis ao
pai de família da casa: O mestre te diz: Onde está o aposento (katályma) em que
hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?” Ou seja, Jesus não celebrou a
última ceia em nenhuma hospedaria, mas sim em uma casa, cujo dono lhe preparou
uma sala reservada, para ele e seus apóstolos.
Mais
provas
E o
confirma ainda a parábola do bom samaritano. Quando Lucas relata que aquele
levou ao ferido até uma hospedaria, usa a palavra pandocei/on “pandokéion” para referir-se a ela, e não katályma.
Se, portanto, quando Lucas usa a palavra katályma não pensa em uma pousada, mas
sim em uma sala reservada de uma casa, é forçoso concluir que no relato de
Maria e José, essa palavra devia ter tal significado. Finalmente, a tradição
arqueológica compartilha deste mesmo parecer. Com efeito, na cidade de Belém
ainda existe a gruta que durante séculos tem sido identificada por peregrinos
como a do nascimento de Jesus. E todos os estudos arqueológicos que se
realizaram em torno dela revelam que não se trata de uma gruta qualquer,
perdida nas curvas de uma estrada palestina, mas sim que era incorporada a uma
moradia como recinto estável. Em lugar daquela casa, hoje se tem construída uma
majestosa basílica em comemoração a ela.
Um José como
Deus manda
Algumas
igrejas, quando chega o Natal costumam teatralizar o episódio do nascimento com
cenários infantis nos quais Maria e José, depois de serem rejeitados
(repelidos) em vários lugares, terminam amparando-se em um estábulo, onde pode
então nascer o menino. Este quadro com a chegada em Belém à última hora e de
noite, batendo desorientadamente à porta das casas e pousadas, e recebendo um não
em todas as partes, pinta a figura de um pobre José inconsciente, negligente, e
cuja incompetência quase causa um péssimo parto de sua esposa. Porém, na
realidade trata-se de uma triste deformação. José de Nazaré foi um verdadeiro
pai para Jesus e um autêntico esposo para Maria, e seu papel foi essencial no
plano de Deus.
O
ensinamento que deixou
Para
nascer, Jesus Cristo tinha preparado sua habitação, seu teto, sua casa. Eram
suas. Seu pai legal, José, as havia aprontado para quando ele viesse a este
mundo. Porém, por razões circunstanciais, no momento de seu nascimento havia
outros que necessitavam dela. Então José, com um gesto decidido, determinou
deixar o lugar previsto e descer ao tosco estábulo. Dizem os psicólogos que as
experiências pré-natais influenciam de modo determinante a vida das crianças.
Seja como for, este evento mostra que desde o princípio a educação que
receberia Jesus em sua casa haveria de marcá-lo para sempre. Jesus não nasceu
pobre simplesmente por que as circunstâncias assim o exigiram, mas sim por uma
opção livre de José. E quando cresceu decidiu abraçar perpetuamente a vida
simples, à qual foi fiel até o fim. Viveu pobre, compartilhou o que tinha, andou
rodeado dos mais necessitados, comeu do que lhe ofereciam, e morreu na mais
absoluta simplicidade; jamais exigiu nada para si mesmo, pois não queria
utilizar algo que a outros poderia fazer falta. Até o fim de sua vida foi sempre
visto aplicando o princípio de que se alguém necessitava de sua habitação ele,
voluntariamente, poderia baixar ao estábulo, afinal, seu pai José lhe havia
ensinado.
La
katályma - Signos de Vida: Quito, Equador, 2002.
Tradução: Valdenir
Soares
Valdenir Soares - Teólogo e
Professor
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