Devia ter amado mais, ter
chorado mais,
Ter visto o sol nascer.
Devia ter arriscado mais e
até errado mais,
Ter feito o que eu queria
fazer.
Queria ter aceitado as
pessoas como elas são;
Cada um sabe a alegria e a
dor que traz no coração.
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído.
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...
Devia ter complicado menos,
trabalhado menos,
Ter visto o sol se pôr.
Devia ter me importado
menos com problemas pequenos,
Ter morrido de amor.
Queria ter aceitado a vida
como ela é;
A cada um cabe alegria e a
tristeza que vier.
O acaso vai me proteger...
Epitáfio - Sérgio Britto (Titãs)
A melhor banda de todos os tempos da última semana,
2001.
O
sentido da vida é um problema que envolve muitas particularidades da existência
humana, e também uma indagação que esse ser, como ser finito, é constantemente
requisitado a responder tanto a si mesmo como aos seus solidários existenciais,
pois é o sentido que direciona e sedimenta os compromissos com o todo da vida à
medida que dele se toma conhecimento tornando-se, também, evidente a
importância que ele assume como força motriz, e gerador e gerenciador das
esperanças e perspectivas que sustentam o existir.
Daí advém a ênfase dada por Frankl à
necessidade que todo ser humano possui de descobrir, no mais íntimo do seu
próprio ser, a resposta para essa pergunta de sentido, visto que por esse
motivo ele próprio sobreviveu por três anos nos campos de concentração nazistas
na Segunda Grande Guerra.
A letra da música exposta acima vem, em
muitos sentidos, caracterizar essa busca - ou a incompreensão pelo que se
busca. Se atentarmos um pouco mais perceberemos que isso se evidencia não
apenas no poema musicalizado pelos Titãs, mas também nos epitáfios (pós-túmulo
ou apenas satíricos) de inúmeras e conhecidas personalidades da nossa história
sejam políticos, pensadores, artistas ou literários. Honestamente falando, creio
que muitas de nossas próprias conjecturas e considerações sobre a vida e seu sentido
não divergiriam muito se arriscássemos a escrevê-las.
Nesse breve ensaio estarei discorrendo sobre
a Logoterapia - também chamada de Terceira Escola Vienense de Psicoterapia - na
visão existencial humanista de seu criador o Dr. Viktor Emil Frankl. Para isso,
farei inicialmente uma breve e sucinta apresentação acompanhada de seu histórico
de vida e do início de seu trabalho.
Em seguida tratarei resumidamente da
Logoterapia nos seus conceitos e atribuições fundamentais onde espero não
empobrecer demasiadamente o seu conteúdo naquilo que tem de mais precioso que é
a busca do sentido último da vida.
1 Sobre Viktor Emil Frankl
Na ocasião em que esteve no Brasil em 1984,
Frankl era professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena e
também professor de Logoterapia na Universidade Internacional da Califórnia.
Lecionou ainda nas Universidades de Harvard, Stanford, Dallas e Pittsburgh. Os
cerca de trinta livros de autoria de Frankl já foram traduzidos para mais de
vinte línguas, incluindo o chinês e o japonês. Viagens de conferências, para as
quais recebeu convite de quase duzentas universidades, levaram Frankl a inúmeros
países de todos os continentes. É o fundador da Logoterapia ou, como diversos
autores a denominam, Terceira Escola Vienense de Psicoterapia [1].
Frankl nasceu em 26 de março de 1905 em
Viena - Áustria, berço cultural e artístico da Europa e considerada a mãe da
psicologia visto que aí também nasceram Sigmund Freud e Alfred Adler
contemporâneos seus e criadores da Psicanálise
e Psicologia Individual também chamadas,
respectivamente, de Primeira e Segunda Escola Vienense de Psicoterapia.
Filho de pais judeus que gozavam de relativo
prestígio na sociedade vienense, Frankl desde pequeno começou a se interessar
pelos trabalhos de Freud. Aos dezesseis anos, convicto de que seguiria o mesmo
caminho enviou-lhe sua primeira carta, o que lhe rendeu, logo em seguida, o
prazer de conhecê-lo pessoalmente. Freud respondia as cartas que o jovem Viktor
lhe enviava, encorajando-o a continuar os estudos de Psicologia e até publicou
na Revista Internacional de
Psicanálise, a qual dirigia, um artigo que Frankl escreveu aos dezenove
anos sobre a Mímica da afirmação e da
negação. Assim ingressava definitivamente no campo da Psicologia aquele
que pouco mais tarde romperia com o pensamento freudiano por considerá-lo
determinista, uma vez que subtraía ao ser humano a capacidade para mudar seu
destino. Viktor Frankl conclui que Freud não vê a pessoa como livre e
modificadora de sua própria vida, e sim como um ser determinado, guiado basicamente
por impulsos (sexuais ou não) e pela procura da satisfação do princípio do
prazer [2].
A partir de um pensamento autônomo que
buscava no sentida da vida a humanização da Psicologia, Frankl aproxima-se
então de Alfred Adler, ex-discípulo de Freud e criador da Psicologia Individual. Nessa teoria Frankl buscava similaridades, pois lhe
parecia oferecer elementos para a compreensão humana; ainda por esse tempo
publicou vários artigos contestando a vigente visão mecanicista de homem.
Em 1926, Frankl apresenta à Associação
Internacional de Psicologia Individual suas ideias sobre o sentido da vida.
Nesse mesmo ano falou em outro congresso sobre “A neurose como expressão do meio”. Em ambas as palestras
divergiu consideravelmente das propostas da Psicologia Individual, foi
veementemente rechaçado, e suas relações com Adler começaram a ficar
problemáticas e enfraquecidas, mas perduraram ainda até 1929. Na verdade, a
problemática com a teoria de Adler é que mesmo tendo escrito um livro intitulado
“O sentido da vida”, ele buscava defender que o ser humano estava no mundo em
busca do poder e da conquista da superioridade, teoria que chocou frontalmente
com a concepção de homem de Frankl [3].
Em 1927, ainda sob a bandeira da Psicologia Individual,
mas com seu pensamento e métodos próprios e em vias de sistematização, fundou e
dirigiu a revista Der Mensch im Alltag
e criou vários centros de ajuda psicológica a jovens carentes da periferia de Viena.
A partir desse trabalho num período de quatro anos conseguiu reduzir o número
alarmante de suicídios a praticamente zero. Com o sucesso do trabalho
amplamente divulgado nos jornais vienenses, vários outros centros foram abertos
em outras cidades e países como Berlim, Frankfurt, Chemnitz, Zurique, Dresde,
Brunn, Teplitz-Schonau, Praga, Budapeste, Iugoslávia e Lituânia. Frankl ganhou
o reconhecimento e a adesão de inúmeros colegas, ex-colegas e até mesmo de
discípulos de Adler que passaram a dedicar horas para o atendimento gratuito em
seus consultórios e nas escolas. Quando se formou em medicina (1930) já havia
rompido completamente com a escola adleriana e no período de 1931 a 1940
encerrou as publicações de sua revista e passou a dedicar-se à Universidade de
Viena, onde se especializou em Neurologia e Psiquiatria. Dirigiu ainda o
departamento de neurologia do Rothschildspital,
tratando exclusivamente de pacientes de origem judaica.
Nessa época tem início a II Guerra Mundial e
os judeus começam a ser capturados e mortos. Um plano de fuga para toda a
família era inviável e, assim, pouco a pouco foram se separando. Sua irmã fugiu
para a Austrália, seu irmão e cunhada foram capturados e enviados ao campo de
Auschwitz onde morreram. Frankl, juntamente com seus pais e sua esposa
decidiram não fugir e foram presos em 1942 e enviados a lugares diferentes.
No momento da separação uma promessa de
reencontro entre Viktor e Tilly Frankl fez com que durante o período em que
esteve preso lutasse com todas as forças para continuar vivo; alguém o
esperava. Como o prisioneiro nº 119.104, Frankl esteve em vários campos de
concentração, inclusive o de Auschwitz. Nos três anos em que presenciou o
holocausto, sofreu as mais degradantes situações e contrariedades que um ser
humano poderia suportar. Aí também presenciou as SS destruírem o seu primeiro
manuscrito sobre Logoterapia. Em todo o sofrimento que suportou nesse período
jamais lhe ocorreu a ideia de suicídio. Ao contrário, dedicou seu tempo
cuidando do equilíbrio mental de seus companheiros de martírio, esperando o
momento de escrever seus livros e de se encontrar com Tilly. No dedicado
trabalho voluntário amadureceu a sua tese da Logoterapia da qual dispôs nos
campos de concentração como
Uma modalidade de tratamento que buscava resgatar,
da intimidade da alma dos prisioneiros, o sentido da vida, o interesse por
alguma tarefa interrompida à espera de realização após o fim do martírio, ainda
que fosse simplesmente procurar encontrar familiares em alguma parte do
mundo [4].
Quando, finalmente, foi libertado em abril
de 1945, aos quarenta anos, estava cansado e enfraquecido pelo longo tormento
que sofrera e não tinha notícias de nenhum parente vivo. Logo tomou
conhecimento da morte dos seus pais, irmãos e amigos. Nas folgas do seu
trabalho no Hospital Policlínico de Viena, escreveu o seu primeiro livro, Cura médica das almas. Com o
pensamento voltado a Tilly, ocupava-se em passar longas horas procurando o seu
nome nas listas de mortos sem, contudo, obter nenhum êxito. Finalmente em abril
de 1984 quando Frankl esteve no Brasil, curiosamente onde menos se esperava,
ele tomaria conhecimento do que há muito o intrigava.
No dia 27 de abril de 1984, Frankl veio ao
Brasil para participar do 1º Encontro Latino-Americano Humanístico Existencial
realizado em Porto Alegre. Era a primeira vez que Frankl teria notícias
concretas e definitivas sobre Tilly, depois de trinta e nove anos. Tudo foi tão
surpreendente que poucos não choraram com a peça que a vida lhe estava
pregando. No aeroporto de Porto Alegre, Frankl foi recebido pelo ex-sogro e sua
ex-cunhada irmã de Tilly, Ella Mayer, que acompanhou os últimos instantes de
agonia daquela que Frankl amou [...]. Frankl não sabia que eles tinham se
refugiado no Brasil, fugindo do pesadelo da guerra [5].
Nessa ocasião foi plantada no Brasil a
semente da Logoterapia. Frankl apresentou-se como “um simples companheiro
existencial, cuja vida contei aqui para que seja possível a compreensão de sua
obra psicológica que se confunde com a vida e sofrimento” [6].
2 O que é a Logoterapia
Frankl faz questão de frisar que a
Logoterapia não é nenhuma panaceia [7], ou
seja, da mesma forma que na psicoterapia em geral, nem todos os métodos podem
ser aplicados em todos os casos e com as mesmas possibilidades de sucesso, nem
tampouco todos os terapeutas podem usar todos os métodos com o mesmo sucesso [8].
A Logoterapia é a psicoterapia existencial
e, como tal, não tem a intenção de substituir nenhuma das grandes propostas da Psicologia
moderna. Ela não é, conforme citado, uma solução definitiva para o dilema da
humanidade, pois surge como alternativa clínica, numa tentativa de ajudar a
encontrar o sentido da vida para cada pessoa na sua realidade, em seu
sofrimento, em sua existência muitas vezes desprovida de propósito [9].
Considerada a Terceira Escola Vienense de
Psicoterapia, a Logoterapia é a corrente da psicoterapia centrada no sentido da
vida; ela se ocupa com a vontade de sentido, o sentido último. Nesse ponto fica
a pergunta: o que devemos entender por sentido? “Dentro da Logoterapia, o
sentido não significa algo abstrato. Ao contrário, é um sentido totalmente
concreto. De fato, é ‘o sentido’ concreto de uma situação com a qual uma pessoa
também concreta se vê confrontada” [10].
Diante de situações como a liberdade, a morte, o isolamento e consequente falta
de um sentido para a vida, o indivíduo se depara com sua fragilidade e nasce um
conflito existencial. Frankl concluiu que a reação e a resposta nessas
situações estão no interior de cada pessoa como uma vocação, um apelo, e que o
papel das psicologias (o que veremos no próximo tópico) é ajudá-las a
encontrar, em si mesmas, esse “para quê” de sua existência [11].
2.1 A tarefa da Logoterapia
Toda
situação na vida tem um sentido. Essa afirmação a princípio nos parece um tanto
fechada e determinista. Entretanto, é exatamente essa a proposta da Logoterapia
frente ao ser humano: ajudá-lo nas suas crises existenciais, não a inventar ou
criar um sentido para a vida, mas descobrir, na sua situação concreta, “o
sentido”, pois este já existe na responsabilidade para com uma tarefa ou
trabalho a ser executado e que brota do exercício consciente da liberdade que
temos [12].
A
Logoterapia é uma ciência que acredita que o ser humano, por ser consciente e
livre, é incondicionado. Dessa forma, a sua tarefa é ajudá-lo a se
conscientizar de que a liberdade é o seu destino dentro do curto espaço de
tempo que a vida lhe oferece,
pois não é possível repetir o passado; o que se
repetem são imagens e fatos, mas a experiência é irrepetível como também o
sentimento, a oportunidade e o tempo. [...] Com essa fragilidade consciente,
descobrimos que a vida, por não ser eterna, cobra atitudes responsáveis [...] [pois],
se tivéssemos todo o tempo do mundo e se nossa vida não tivesse limites, talvez
adiássemos para sempre nossas responsabilidades, ou melhor, talvez não houvesse
a necessidade de ser responsável. O que falar dos nossos compromissos? O que
pensar de nossa criatividade presente na iminência de perigosas situações? [13]
Essa, podemos dizer, urgência em assumir a responsabilidade e buscar o sentido último
em determinada situação ficou bastante evidente, segundo Frankl, no período em
que esteve em situações-limite trabalhando entre os prisioneiros nos campos de
concentração nazistas. Ele nos relata que o prisioneiro que perdia a
perspectiva de futuro
...estava condenado a definhar, confirmando a
estreita relação existente entre o ânimo de uma pessoa, seu valor e suas
esperanças. De forma instintiva, sua sobrevivência e a de seus companheiros que
resistiram devia-se, portanto, ao sentido que lhes dava capacidade de
transcender àquelas grades, através do sofrimento, numa atitude intencional e
livremente aceita, rumo a um valor mais alto. Frankl encontrou sentido para
realizar-se naquela espécie de vida subumana e percebeu que todo aquele que
também o encontrava adquiria forças para sobreviver ao infortúnio. Assim a
resposta ao sentido da vida é mobilizadora de forças vitais. Ou, ao contrário,
o vazio - ou o vazio existencial - é capaz de causar enfermidade [14].
Percebemos
então que é impossível receitar o sentido, mas podemos descrever o que ocorre
numa pessoa que esteja à procura de sentido. Encontrar o sentido então seria o
mesmo que perceber uma Gestalt -
no sentido das teorias de Wertheimer e Lewin que, por hora, fogem ao escopo
desse trabalho, mas tratam com um caráter
de exigência que seria inerente a situações específicas. No caso desse
sentido gestáltico, porém, “não se trata de uma ‘figura’ que se destaca
do seu ‘fundo’, mas o que nós percebemos sempre ao encontrarmos um sentido é -
no fundo da realidade - uma possibilidade: a possibilidade de modificar a
realidade, desta ou daquela forma” [15].
Os
aspectos aparentemente negativos da existência humana também podem ser
transformados em algo positivo, num mérito, quando enfrentados com atitude e
postura corretas. Em seu autoconceito originário o homem comum sabe que a vida
o coloca em determinadas situações que exigem um enfrentamento de uma forma ou
de outra; a compreensão originária que ele tem de si mesmo lhe incita a
descobrir esse sentido. A fenomenologia traduz essa autocompreensão apenas para
a linguagem científica. A Logoterapia, por sua vez, traz ao nível do
conhecimento da pessoa comum, o conhecimento, referente às possibilidades de
encontrar um sentido na vida, capacitando-a a encontrar esse sentido [16].
2.2
Logoterapia e religiosidade
A abordagem existencial de Viktor Frankl
veio fazer frente ao pensamento da psicanálise que interpreta o ser humano, a priori, como ser dirigido ou
impulsionado. Frankl até entende a posição freudiana considerando a época
histórica em que surgiu bem como o seu tom reacionário e tipicamente de
resposta ao contexto social impregnado de puritanismo ao qual Freud não somente
reagiu, mas também agiu a partir dele. Essa posição de Freud legou à
psicanálise duas características básicas: o atomismo psicológico e a teoria da
energia psíquica as quais reduz o homem, em última análise, a um aparelho
psíquico autômato. Precisamente nesse ponto Frankl coloca um outro conceito de
ser humano, priorizando a “autonomia
da existência espiritual” [17].
A análise existencial atribui a esse ser um
senso de responsabilidade, pois interpreta a sua existência, em sua essência
mais profunda, como ser responsável, apto para um dever, para uma missão; apto
a dar resposta quando interrogado sobre o sentido da vida, visto que não é o
ser que interroga a vida, mas ela, em suas situações, é que o interroga. Dessa
forma “a existência só poderá ser ‘nossa’ se for responsável” [18]. Esse ser
autônomo e responsável é que confere transcendência à existência humana.
Onde quer que transcenda a si mesmo, o homem se
eleva sobre seu ser psicofísico, deixa o plano do somático e do psíquico e
entra no espaço do humano propriamente dito, o qual é constituído por uma nova
dimensão, a dimensão noética, a dimensão do espiritual, pois nem o somático nem
o psíquico isolados constituem o que há de propriamente humano. Antes, ambos representam
apenas facetas da existência humana [...][19].
Se,
para Freud, o ser humano é um simples inconsciente instintivo, para Frankl ele
é bem mais que isso, um inconsciente espiritual. Enquanto que para Jung Deus é
uma imagem sem maior significância, para Frankl Deus é uma realidade viva,
existente e conhecida pela espécie humana ainda que a ciência positiva não o
prove. Frankl defende ainda, em contraposição a Freud, que o homem tem uma
espiritualidade que foi reprimida e recalcada pela opressão, muito mais que uma
sexualidade reprimida.
Esse aspecto do ser humano - como
inconsciente espiritual - em relação ao divino é comparado a uma pessoa
tentando encontrar um objeto que perdeu na grama. Essa pessoa apalpa, observa
atentamente, afasta as folhas com cuidado e procura... Entretanto, o que torna
possível à pessoa encontrar o objeto é o fato de ela já conhecer a sua cor,
forma e tamanho. No magnífico livro das Confissões, Santo Agostinho apresenta
bem esse princípio em um de seus escritos mais belos, poéticos e inspiradores.
O texto diz: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te
amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! [...]
Estavas comigo, mas eu não estava contigo. [...] Eu te experimentei, e agora
tenho fome e sede de ti” [20].
Penso que Santo Agostinho entendeu e
expressou de forma fantástica a consciência que o ser humano tem de sua
condição sobre-humana. Dimensão na qual se apoia a fé básica no sentido último
da vida. O fato de se ver como um ser no mundo mas com lastros além, no
infinito, é o que faz de muitos pessoas cheias de esperança e fé na vida. Se o
ser humano busca a Deus é porque já o conhece seja pelas obras da criação, seja
pelo fato de sua fragilidade ante as situações de sua existência, seja por
arquétipos, etc. O que realmente interessa é que parece haver uma necessidade
primordial em se acreditar [21].
A Logoterapia leva em conta e valoriza
grandemente essa dimensão espiritual humana, pois é uma psicoterapia que parte
do espiritual, da esperança como força motriz que anima a existência
humana. Ela não é uma seita, nem uma teologia, nem tampouco uma filosofia, mas
sim uma forma de psicoterapia existencial que acredita na existência de um
Tu-eterno, um Deus que, ainda que ignorado, está aninhado na intimidade de cada
um [22]. Em se tratando disso ele acrescenta
que, quanto à forma e linguagem que cada pessoa, individualmente, encontra para
se dirigir a Deus, poderíamos chamar de prece, especialmente na sua forma de
diálogo. Porém, precisamos levar em consideração que esse dirigir-se a Deus
ultrapassa o sentido de uma fala puramente interpessoal; ela se torna também intrapessoal. De acordo com Frankl, nesse sentido
Deus é o parceiro dos nossos mais íntimos diálogos
conosco mesmos. [...] Sempre que estivermos totalmente a sós [...] na
derradeira solidão e honestidade, é legítimo denominar o parceiro destes
solilóquios de Deus, independentemente de nos considerarmos ateístas ou
crentes em Deus [23].
2.3 As técnicas da Logoterapia
A Logoterapia, como forma de análise
existencial humanística, elaborou algumas técnicas clinicas para atuação
prática. Até o presente momento e desenvolvimento da Logoterapia, essas
técnicas são cinco: intenção paradoxal,
derreflexão, apelação, diálogo socrático
e denominador comum.
Por
motivo de tempo e espaço, faremos apenas uma breve apresentação de cada uma
delas o que, infelizmente, empobrece absurdamente o seu entendimento.
a) Intenção
paradoxal - consiste em prescrever ao cliente o sofrimento que ele já possui.
Com ela o terapeuta propõe ao cliente manter o sintoma que está incomodando
como estratégia para se conseguir o contrário;
b) Derreflexão
- pode ser definida como uma tentativa de deslocar a atenção do cliente que
está preocupado com sua “doença” para alguma outra coisa mais importante e mais
significativa de sua vida, que esteja no futuro;
c) Apelação
- é precisamente o recurso técnico que permite o reavivamento da riqueza
sentimental e afetiva da criatura em estado de perturbação e consiste em
“denunciar ao cliente a manifestação de sua capacidade de sentir a sua
humanidade escondida e carente de um resgate”;
d) Diálogo
socrático - é a discussão sobre o autoconhecimento que permite ao cliente
entrar em contato com o seu inconsciente noético,
seu potencial humano e a direção que ele pretende dar à própria existência;
e) Denominador
comum - é a técnica que, em situações-limite (separação conjugal, aborto,
mudanças) trabalha com a capacidade do cliente em tomar decisões, avaliando
minuciosamente sobre as perdas e ganhos, se for tomado este ou aquele caminho [24].
2.4
O conceito de liberdade na Logoterapia
O
termo liberdade na abordagem de Frankl tem, talvez, maior importância e se
torna até mais usado do que Logoterapia visto que a crença na liberdade é o
pilar principal dessa psicoterapia. A Logoterapia nega veementemente que o ser
humano seja condicionável, impulsionado por impulsos sexuais, e/ou arrastado
pelo desejo de encontrar o prazer. Pelo contrário, ela enfatiza que, no sentido
mais extremo que se possa compreender, cada indivíduo tem em si uma vocação
para a liberdade onde ele busca encontrar o sentido de sua vida e construir a
sua história, pois a consciência de sua responsabilidade o inspira a agir dessa
forma.
Entretanto,
o processo de libertação esbarra nos limites próprios de um ser que sabe que a
responsabilidade é o pressuposto máximo para se ser livre verdadeiramente. Ela
é de tal modo indispensável ao indivíduo que é quase impossível não ser
responsável, uma vez que o máximo da vida é tomar decisões e assumir
responsabilidades. Até mesmo a omissão é uma tomada de decisão com consequente
responsabilidade. Desta forma, na ótica da Logoterapia, a liberdade não é
definida de fora para dentro, mas aparece como vocação pessoal do ser humano e
consiste na capacidade de dar respostas à vida e de assumir aquilo que se faz [25].
Além
da responsabilidade, outro desdobramento fundamental da liberdade é a
consciência. Frankl herdou de Adler a crença de que todas as pessoas são conscientes
e de que tem controle sobre tudo o que fazem; são conscientes até mesmo da sua
dimensão inconsciente. A consciência permanece mesmo durante o sono; até mesmo
nos estados de coma ali está um raio, um lampejo de consciência. Se, assim,
temos consciência de que podemos cometer enganos, é possível então redobrar o
uso hábil de nossa responsabilidade. Assim, liberdade, responsabilidade e
consciência extrapolam a mera conceituação filosófica, pois só podem ser
compreendidas como manifestações do ser humano no mundo. “No uso da consciência
a pessoa se humaniza e passa a dar expressão à sua liberdade pessoal, a tomar
atitudes e a assumir uma posição de responsabilidade frente à vida e ao seu
sentido. [...] São atribuições próprias da dimensão espiritual humana que, de
forma nenhuma, podem ser maculadas” [26].
Considerações
finais
Ao
fim desse breve texto é importante considerar não apenas a pertinência da
proposta libertadora da Logoterapia, mas sua necessidade por valorizar a pessoa
como ser autônomo. Aliás, ela nasce das convicções próprias de alguém que não
se viu - diria - determinado a nadar nas correntes que definiam o pensamento
vigente, mas de alguém que mediante estudos e sistematizações propôs
alternativas que se mostraram plenamente eficazes quando, assim, foram
requeridas.
Dentro
de um contexto altamente pragmático e mecanicista - que vivia ainda os
auspícios do progresso técnico e científico como fins últimos da emancipação e redenção
do ser humano -, Frankl se volta para o todo da constituição humana
(corpo-alma-espírito), para a liberdade e existência responsáveis fundamentada
em um “eu” transcendente, autônomo e espiritual. Olhando para além do meramente
psicossomático, ainda em seus primeiros passos a Logoterapia já foi capaz de
oferecer sustentação apontando caminhos e possibilidades para muitos em uma
sociedade diminuída e despersonalizada por incertezas e circunstâncias
adversas, e mesmo mutilada pelas teorias freudianas, marcadamente reacionárias
ao ambiente em que foram gestadas.
Dessa
forma, do ponto de vista de sua eficiência a Logoterapia tem muito a oferecer,
pois vivemos hoje numa sociedade carregada de influências próprias de estilos
de vida hipermodernos, na qual os dias são marcados por incertezas,
relativismos, individualismo, medo, solidão etc., e as pessoas determinadas por
clichês e trivialidades que as levam aos limites da desconstrução da essência
humana, um verdadeiro caos existencial onde consequências extremamente danosas
têm sido verificadas.
É
nesse ambiente que vislumbro a proposta e a tarefa da Logoterapia, a partir
daqueles que, como Frankl, possam colocar esse conhecimento a serviço de seus
companheiros e companheiras existenciais, daqueles que necessitam de uma
fagulha de fé e de esclarecimento acerca do sentido da vida. E que, ao final,
independente do lado que estivermos, a tônica do nosso epitáfio não seja apenas
“Devia ter...”.
Obs.: Para um melhor entendimento sobre a Logoterapia e os escritos de Viktor
Frankl, dois trabalhos são essenciais.
FRANKL,
Viktor E. Em busca de sentido - um psicólogo no campo de concentração. Porto Alegre/São Leopoldo: Sulina e Sinodal, 1987.
FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus.
4ª ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal e Vozes, 1997.
Valdenir Soares - Teólogo e
Professor
Comentários e/ou observações:
valdenirtre@gmail.com
Baseado em: Logoterapia
- a busca pelo sentido da vida. Trabalho apresentado como
requisito parcial para aprovação na Disciplina de Introdução à Psicologia.
Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2003.
Referências Bibliográficas
[26] GOMES, op. cit., p. 48.