quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O justo pela fé viverá!



“Fé é o pássaro que pressente a luz e canta quando a madrugada é ainda escura” - Tagore.


Nesses dias que antecedem o final do ano ouvimos muito as pessoas falarem a respeito de fé. Fé para receberem o menino Jesus. Fé para passar a virada do ano com o pé direito, com sorte, com novas energias etc. Baseados no que entendem por fé as pessoas se preparam para receberem o ano que se inicia, propõem a si mesmas certos propósitos, adquirem determinadas cores de roupas, objetos e alimentos, pois todas essas coisas, juntamente com a fé, proporcionarão um novo ano cheio de saúde, alegrias e sucesso.

Percebemos que a fé é tema sempre recorrente e em evidência. Em muitos aspectos é o cerne e razão de viver de milhões de pessoas, em nossas cidades, estados, e por todo o mundo. Quantos de nós já não ouvimos em situações adversas a célebre frase: tenha fé, fulano, porque as coisas vão melhorar?

Mas há, também, os céticos, os descrentes, os que dizem que crer, ou ter fé é coisa de superstição, sem muito de raciocínio, coerência, fundamento ou de prática mesmo. Mas o que é a fé? Como se conceitua a fé? Como se julga a verdadeira fé, pois a verdade é que todos (ou quase), de alguma forma creem em algo e os que creem defendem o objeto da sua fé?

O apóstolo Paulo faz uma íntima ligação da fé com a vida. Aquele que é justo “pela fé viverá”. Deixemos, por enquanto, o elemento “justiça”, e vamos entender de que fé e de que vida o Apóstolo está falando, pois o texto citado por ele é emprestado do livro do Profeta Habacuc que viveu em fins do século VII a.C, mais provavelmente entre 605 e 600 a.C.

Por esse tempo o povo hebreu do reino de Judah (Sul) vivia situações extremas de opressão, violência e injustiças sociais por parte de seus governantes, que distorciam a Lei (Torah) e permitia que o ímpio subjugasse o justo (Habacuc 1.1-3). A situação se agravou com a chegada do império neobabilônico que se firmou sobre eles exigindo que o reino lhe pagasse tributo de submissão. Nesse contexto Habacuc se coloca diante de Deus para questionar a que ponto a situação generalizada de violência chegou e quando virá a tão esperada salvação. A resposta do Senhor é desconcertante, pois diz que contra essa situação caótica trará como castigo os caldeus para que façam justiça. O Profeta se sente ainda mais perturbado, pois como pode um povo ímpio, cruel e injusto fazer justiça quando a sua força está exatamente na violência, perversão e injustiça? O Senhor responde então que num tempo determinado a situação mudará e mesmo que haja arrogantes e os que ignoram a retidão, todavia o justo por sua fé viverá.

Para os contemporâneos de Habacuc a mensagem era que Iahweh preservaria completamente (de um perigo real e de uma situação de morte) a vida daquele que confia, isto é, daquele que tem fé. A mensagem do Profeta tornou-se reconhecida em todos os tempos como mensagem perene, válida e atual por se tratar de temas (fé, justiça, livramento) que sempre são recorrentes. Após muita angústia e questionamentos o Profeta crê e aí encontra, por fim, o justo caminho: o do abandono confiante em Deus e na sua salvação [1].

A citação de Habacuc aparece ainda em dois outros escritos do Novo Testamento. Na Carta aos Hebreus o autor adverte os cristãos que estão se dispersando por causa das perseguições (diáspora), e recomenda que mesmo sendo injuriados, perseguidos por sua fé e sofrido a perda de tudo (casas e bens) permaneçam firmes e confiantes, pois diante deles se apresenta grande recompensa que certamente não falhará (Hebreus 10.32-38). E, na apaixonada Carta aos Gálatas, a citação aparece com um propósito um pouco diferente: decepcionado com a atitude dos cristãos diante daqueles que queriam afastá-los do Evangelho, Paulo escreve apelando para que lembrem de Abraão e seu exemplo de fé e em seguida retoma Habacuc para os constranger a não depender da justiça própria, mas sim daquela que é pela fé (Gálatas 3.11).

Voltando à Carta aos Romanos, vemos que o Apóstolo Paulo quer também confirmar que Deus age sempre de forma completa e que em suas promessas, tanto na Antiga quanto na Nova Aliança - firmada pelo sacrifício de Cristo - existe uma conexão indissolúvel entre fé, justiça e vida e que é se entregando sem reservas e confiando plenamente na justiça de Deus que se chega a conhecê-lo como o Deus que salva [2].

Entendemos que a fé que Deus requer daqueles que dizem crer, é uma fé completa, confiante, e que tenha por base seu projeto de vida para a humanidade a partir do amor demonstrado na cruz. Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito para que todo o que nele crê não pereça (se perca), mas tenha a vida eterna (João 3.16).

Feliz 2015 cheio de vida, amor, esperança, e claro, muita fé!



[1] BONORA, Antonio. Naum, Sofonias, Habacuc, Lamentações: sofrimento, protesto e esperança. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 133.

[2] FRANZMANN, Martin H. A Carta aos Romanos. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1972, p. 32.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Palestinos ou israelitas: de que lado você está?


Ao verem isso, os discípulos Tiago e João perguntaram: “Senhor, queres que façamos cair fogo do céu para destruí-los?”. Mas Jesus, voltando-se, os repreendeu, dizendo: “Vocês não sabem de que espécie de espírito vocês são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los” – Lucas 9.54, 55.

O mundo segue acompanhando o triste e interminável conflito entre palestinos e israelitas e se perguntando até quando haverá derramamento de sangue e perda de vidas, e se é possível uma paz, se não definitiva, ao menos duradoura que sirva de bases para um diálogo contínuo e possível acordo. No Brasil, pessoas e grupos têm se posicionado e defendido perspectivas que nem sempre condizem com o ideal de paz que contemple os dois lados, pois são pontos de vistas parciais firmados em pressupostos religiosos, ideológicos, ou em ambos.
Por um lado, uma ala ideológica que milita em favor das minorias defende a qualquer custo a criação de um estado palestino alegando que eles têm direito. Considerando a duração dos conflitos e o horror vivido por famílias, especialmente mulheres, idosos e crianças, é necessária uma ação imediata que venha pôr fim às mortes, e nesse sentido não estão errados. Porém, o equívoco é querer resolver toda a situação de forma simples e imediata sem considerar as consequências futuras, visto que uma solução não ajustada corretamente entre as partes pode apenas mascarar o problema e acirrar ainda mais a violência.
Do outro lado, baseado em leituras simplistas e maniqueístas da Bíblia, grande parte dos líderes evangélicos desenvolve e instiga em seus rebanhos a ideia de que Israel é o povo de Deus e, consequentemente, são do bem, e que os palestinos são inimigos de Israel, logo, inimigos de Deus e, portanto, do mal. Desprovidas de uma reflexão bíblico-histórica adequada, de uma hermenêutica sadia, e de princípios verdadeiramente cristãos, interpretações desse tipo desconsideram leituras como as do Livro de Jonas, Rute e outros, no Antigo Testamento, e de palavras do próprio Senhor Jesus que chama a atenção de seus discípulos - que queriam imprecar fogo contra os inimigos de Israel - dizendo que veio ao mundo para salvar as pessoas e não para destruí-las.
Diante do que foi exposto, e ainda que pareça paradoxal, percebemos que a mais simples das reflexões nos leva a escolher um lado, o lado da vida, seja de quem for, pois todos os povos têm o direito de existir e se defender, mas toda vida tem também o mesmo valor. A reflexão não pode ser fundamentada apenas nas individualidades, pois um sempre verá o seu lado em detrimento dos demais. Logo, as lideranças, tanto israelitas quanto palestinas, não podem ser exercidas em nome de extremistas que querem existir a partir da destruição de seus semelhantes. Um meio de coexistência (convivência) pacífica deve ser mutuamente buscado e construído respeitando-se os pressupostos de cada povo, independente de serem sociais (culturais), geográficos ou religiosos. Não é uma tarefa fácil, mas o sangue das vidas perdidas e que ainda se podem perder clamam por isso.
Oremo pelos judeus, e oremos pelos palestinos por quem Jesus, igualmente, entregou sua vida.
Valdenir Soares - Teólogo e Professor

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Disposição versus Disponibilidade



E Eliseu voltou, apanhou a sua parelha de bois e os matou. Queimou o equipamento de arar para cozinhar a carne e a deu ao povo, e eles comeram. Depois partiu com Elias tornando-se o seu auxiliar - I Reis 19.21.



Imagine que um amigo que gosta muito de pescar lhe convide para irem ao Pantanal por uma semana com tudo pago. Você, que coincidentemente estará em férias, aceita prontamente. Porém, três dias antes de viajarem você desiste justificando que não havia pensado direito sobre o assunto, nem avaliado os prós e os contras quanto à longa viagem, desconfortos, picadas de mosquitos etc. O seu amigo então liga para um amigo de antigas aventuras e que também é apaixonado por pescaria. Todo animado o rapaz se programa, arruma os apetrechos e fica preparado. Porém, para sua tristeza, um colega de trabalho fica doente e ele tem que substituí-lo...

O que essa pequena história nos mostra é que disposição e disponibilidade nem sempre andam juntas, mas as implicações que elas trazem são mais presentes do que imaginamos. Tudo o que se quer fazer na vida depende delas, e muitas coisas positivas ou negativas acontecem ou deixam de acontecer pelo simples fato de haver ou não disposição e disponibilidade.

Mas o que são disposição e disponibilidade? Disposição é determinação, ânimo, vontade - baseada no empenho e no zelo. Foi o que aconteceu na primeira hipótese acima citada: havia toda a disponibilidade já que o rapaz estaria em férias, mas não havia determinação, vontade verdadeira. Disponibilidade, por sua vez, é qualidade ou estado de disponível; é estar livre, sem impedimentos. O segundo caso mostra que havia disposição; aquele rapaz estava pronto, preparado, desejoso, voluntário, mas havia um impedimento, faltou disponibilidade, e aquele amigo “pirangueiro” acabou viajando sozinho.

Na Bíblia também há muitos acontecimentos que giram em torno de disposição e disponibilidade. Na verdade isso acontece porque são elas que dão o colorido às nossas experiências com Deus.

Então o Senhor disse a Abrão: “Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados”.

Partiu Abrão, como lhe ordenara o Senhor, e Lot foi com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã - Gênesis 12.1-4.

Vejam a história do chamado de Abrão. Nesse encontro aconteceu algo totalmente novo em sua vida, mas também foi algo que só se tornou completo pela resposta (feedback) que teve. Houve uma palavra, um chamado, e essa palavra gerou fé, e essa fé gerou imediatamente em Abrão a disposição e a disponibilidade. A partir daí não houve mais impedimentos, e assim “Partiu Abrão, como lhe havia ordenado o Senhor...”.

Vamos comparar com a história do Profeta Jonas.

A palavra do Senhor veio a Jonas, filho de Amitai, com esta ordem: “Vá depressa à grande cidade de Nínive e pregue contra ela, porque a sua maldade subiu até a minha presença”. Mas Jonas fugiu da presença do Senhor, dirigindo-se para Társis. Desceu à cidade de Jope, onde encontrou um navio que se destinava àquele porto. Depois de pagar a passagem, embarcou para Társis, para fugir do Senhor - Jonas 1.1-3.

Com Jonas acontece algo totalmente diferente. Quando Deus o chama para uma missão, apesar de já se presumir haver nele a disponibilidade, pois já era reconhecido como profeta do Senhor (II Reis 14.25), não houve nele disposição, mas desculpas e fuga da presença de Deus.

Trazendo para o Novo Testamento, lembramos também que durante toda sua vida terrena Jesus vivenciou situações de disposição e disponibilidade, umas positivas, outras negativas. Em certa ocasião no início do seu ministério a Palavra diz que ao chamar um grupo de pescadores “No mesmo instante eles deixaram as suas redes e o seguiram” (Marcos 1.16-20). Mas fala também que certo homem rico, que mostrava respeitável disposição em seguir a lei e guardar os mandamentos, não passou pelo teste da disponibilidade, pois estava preso às muitas coisas da vida (Mateus 19.16-22).

Porém, um dos encontros mais radicais entre disposição e disponibilidade se encontra no chamado de Eliseu, um jovem e simples camponês, que estava cuidando de seus afazeres.

Então Elias saiu de lá e encontrou Eliseu, filho de Safate. Ele estava arando com doze parelhas de bois, e estava conduzindo a décima segunda parelha. Elias o alcançou e lançou sua capa sobre ele. Eliseu deixou os bois e correu atrás de Elias. “Deixa-me dar um beijo de despedida em meu pai e minha mãe - disse - e então irei contigo”. “Vá e volte - respondeu Elias - lembre-se do que lhe fiz”. E Eliseu voltou, apanhou a sua parelha de bois e os matou. Queimou o equipamento de arar para cozinhar a carne e a deu ao povo, e eles comeram. Depois partiu com Elias tornando-se o seu auxiliar - I Reis 19.19-21.

As circunstâncias e a forma como foi tocado pelo chamado (manto de Elias) despertou em Eliseu uma disposição tão grande que o levou a se despedir dos pais. Porém, foi a convicção que teve das implicações do acontecimento que o levou a matar sua parelha de bois, assá-los com a madeira do arado, e fazer uma refeição de despedida dos seus amigos. Ou seja, Eliseu tinha a disposição e então criou a disponibilidade, em parte fazendo um ajuste, e em parte livrando-se do que o poderia impedir. A partir daí esteve totalmente disponível para andar com Elias “tornando-se o seu auxiliar”.

As histórias acima expostas não estão sugerindo que ninguém que se une à igreja abandone a família, deixe os amigos, o trabalho, os negócios para estarem à frente do povo de Deus. Na Igreja de Cristo existem muitos serviços, muitos chamados, e existem muitos que são chamados e comissionados para determinados serviços; alguns até recebem para isso. O que precisamos entender é que quando fazemos a escolha de seguirmos e servirmos a Cristo estamos mostrando a nossa disposição em realmente conhecê-lo, andar com ele e com seu povo em uma comunidade de fé, e isso vai exigir de nós não apenas disposição, mas disponibilidade. É preciso que todos saibam que a vida cristã tem suas exigências, e que todo que é comissionado saiba que toda função (eletiva ou não, remunerada ou não) na igreja vai exigir de você - repito - não apenas disposição, mas também disponibilidade. Como segui-lo e servi-lo sem andar com ele e com seu povo. E como andar como ele e com seu povo se não há nenhum tempo para isso? 
A Bíblia diz que quem almeja uma função à frente do povo de Deus “excelente obra almeja” (I Timóteo 3.1). Porém há de se avaliar os prós e os contras, a disposição e a disponibilidade para o serviço. Não se deve buscar uma função sem pesar as consequências, apenas por vaidade ou qualquer outro sentimento. Qual é a disponibilidade para exercer a função e ocupar tal cargo? Toda atividade humana requer aperfeiçoamento, mas nem sempre a pessoa está disposta a estudar, participar, desenvolver, compartilhar e crescer naquilo que se está fazendo. Lembre-se que a vida é um todo. Ela não se resume só em estudos, diversão, trabalho, negócios. A tradição bíblica e cristã ensina que há muitas alegrias e recompensas por uma função bem desempenhada (I Timóteo 3.13; I Pedro 5.1-4); há muitas alegrias e recompensas para aqueles que na vida cristã e no serviço encontraram disposição e disponibilidade.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor.