“Fé é o pássaro que pressente a luz e canta quando a madrugada é ainda escura” - Tagore.
Nesses dias que antecedem o final
do ano ouvimos muito as pessoas falarem a respeito de fé. Fé para receberem o
menino Jesus. Fé para passar a virada do ano com o pé direito, com sorte, com
novas energias etc. Baseados no que entendem por fé as pessoas se preparam para
receberem o ano que se inicia, propõem a si mesmas certos propósitos, adquirem determinadas
cores de roupas, objetos e alimentos, pois todas essas coisas, juntamente com a
fé, proporcionarão um novo ano cheio de saúde, alegrias e sucesso.
Percebemos que a fé é tema sempre
recorrente e em evidência. Em muitos aspectos é o cerne e razão de viver de
milhões de pessoas, em nossas cidades, estados, e por todo o mundo. Quantos de
nós já não ouvimos em situações adversas a célebre frase: tenha fé, fulano, porque as coisas vão melhorar?
Mas há, também, os céticos, os descrentes,
os que dizem que crer, ou ter fé é coisa de superstição, sem muito de raciocínio,
coerência, fundamento ou de prática mesmo. Mas o que é a fé? Como se conceitua
a fé? Como se julga a verdadeira fé, pois a verdade é que todos (ou quase), de
alguma forma creem em algo e os que creem defendem o objeto da sua fé?
O apóstolo Paulo faz uma íntima
ligação da fé com a vida. Aquele que é justo “pela fé viverá”. Deixemos, por enquanto,
o elemento “justiça”, e vamos entender de que fé e de que vida o Apóstolo está
falando, pois o texto citado por ele é emprestado do livro do Profeta Habacuc
que viveu em fins do século VII a.C, mais provavelmente entre 605 e 600 a.C.
Por esse
tempo o povo hebreu do reino de Judah (Sul)
vivia situações extremas de opressão, violência e injustiças sociais por parte
de seus governantes, que distorciam a Lei (Torah) e permitia que o ímpio
subjugasse o justo (Habacuc 1.1-3). A situação se agravou com a chegada do
império neobabilônico que se firmou sobre eles exigindo que o reino lhe pagasse
tributo de submissão. Nesse contexto Habacuc se coloca diante de Deus para
questionar a que ponto a situação generalizada de violência chegou e quando
virá a tão esperada salvação. A resposta do Senhor é desconcertante, pois diz
que contra essa situação caótica trará como castigo os caldeus para que façam
justiça. O Profeta se sente ainda mais perturbado, pois como pode um povo
ímpio, cruel e injusto fazer justiça quando a sua força está exatamente na
violência, perversão e injustiça? O Senhor responde então que num tempo
determinado a situação mudará e mesmo que haja arrogantes e os que ignoram a
retidão, todavia o justo por sua fé viverá.
Para os contemporâneos de Habacuc a mensagem
era que Iahweh preservaria completamente (de um perigo real e de uma situação
de morte) a vida daquele que confia, isto é, daquele que tem fé. A mensagem do
Profeta tornou-se reconhecida em todos os tempos como mensagem perene, válida e
atual por se tratar de temas (fé, justiça, livramento) que sempre são recorrentes.
Após muita angústia e questionamentos o Profeta crê e aí encontra, por fim, o
justo caminho: o do abandono confiante em Deus e na sua salvação [1].
A citação de Habacuc aparece ainda em dois
outros escritos do Novo Testamento. Na Carta aos Hebreus o autor adverte os cristãos
que estão se dispersando por causa das perseguições (diáspora), e recomenda que
mesmo sendo injuriados, perseguidos por sua fé e sofrido a perda de tudo (casas
e bens) permaneçam firmes e confiantes, pois diante deles se apresenta grande recompensa que certamente não
falhará (Hebreus 10.32-38). E, na apaixonada Carta aos Gálatas, a citação
aparece com um propósito um pouco diferente: decepcionado com a atitude dos
cristãos diante daqueles que queriam afastá-los do Evangelho, Paulo escreve
apelando para que lembrem de Abraão e seu exemplo de fé e em seguida retoma
Habacuc para os constranger a não depender da justiça própria, mas sim daquela
que é pela fé (Gálatas 3.11).
Voltando à Carta aos Romanos, vemos que o Apóstolo
Paulo quer também confirmar que Deus age sempre de forma completa e que em suas
promessas, tanto na Antiga quanto na Nova Aliança - firmada pelo sacrifício de Cristo
- existe uma conexão indissolúvel entre fé, justiça e vida e que é se
entregando sem reservas e confiando plenamente na justiça de Deus que se chega
a conhecê-lo como o Deus que salva [2].
Entendemos que a fé que Deus requer daqueles
que dizem crer, é uma fé completa, confiante, e que tenha por base seu projeto
de vida para a humanidade a partir do amor demonstrado na cruz. Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito para que todo o que nele
crê não pereça (se perca), mas tenha a vida eterna (João 3.16).
Feliz 2015 cheio de vida, amor, esperança, e
claro, muita fé!
[1] BONORA, Antonio. Naum, Sofonias,
Habacuc, Lamentações: sofrimento, protesto e esperança. São Paulo:
Paulinas, 1993, p. 133.
[2] FRANZMANN, Martin H. A
Carta aos Romanos. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1972, p.
32.
Valdenir Soares - Teólogo e Professor.