Como anunciar a justificação pela fé num mundo de
injustiças?
Confesso
que não é tarefa fácil responder a tal questão visto que o nosso olhar se põe
de um ponto, se não privilegiado, pelo menos em melhores condições que o de
milhares ou milhões de pessoas que tem apenas na fé motivos para iniciar (ou
seria continuar) a rotina de um novo dia que se apresenta com as mesmas
perspectivas já vencidas e carimbadas do dia que passou.
Entretanto,
considero de extremo valor a pesquisa por abrir caminhos que possam nos
orientar numa atividade pastoral saudável e condizente com os propósitos de Deus,
e descortinar aspectos da sua Palavra que mostrem a plenitude de tais propósitos.
Para avançarmos
um pouco no entendimento do conceito de justiça como Deus requer estaremos
fazendo uma breve apresentação dessa palavra e como era percebida nos ambientes
do Antigo e do Novo Testamentos bem como ao longo da história da Igreja.
Para fins
de reflexão estaremos trazendo algumas considerações dentro da Teologia Latino-americana
tendo por bases algumas linhas do pensamento de Lutero, e em textos de personalidades
do nosso próprio tempo que pensam a vida em comunidade a partir da práxis
cristã nas igrejas atuais.
O Antigo Testamento não fala de Justificação, mas de
justiça (justiça de Deus e dos homens - reis, governantes, juízes etc.) onde a
palavra aparece geralmente na forma causativa do verbo com o sentido de fazer
justo, declarar justo, proclamar justo [1].
Ao tratar do termo justificação, o olhar veterotestamentário recai sobre aquele
de quem, acreditavam, provinha toda a justiça, pois Iahweh é, em inúmeros textos
da Antiga Aliança, descrito como O Justo, particularmente nos ditos do profeta
Jeremias que o enuncia em dois momentos como Iahweh Tsedeqnu, o “Senhor
justiça nossa” (Jr 23.6; 33.16) capaz de estabelecer a sua vontade na
restauração de Jerusalém suscitando um rei que aja com justiça. A justificação
que busca firmar suas bases naquele que é justo tem o seu referencial primeiro
no Decálogo onde de forma verticalizada - mas principalmente horizontal -
medeia os relacionamentos entre as partes envolvidas quer sejam das pessoas com
o seu Deus ou - e nesse aspecto predominantemente - no relacionamento do
dia-a-dia de homens e mulheres do povo israelita.
Ao colocarmos “aquele que justifica” (Is 50.8) em evidência e, juntamente com o
Decálogo, os apresentarmos como referenciais de justiça, automaticamente
entramos na história do povo de Israel, nas suas relações internamente como
sociedade política organizada, e nas suas relações com Iahweh, seu Deus. Assim
sendo necessitamos entender o conceito corrente de justiça em Israel ao longo
dos séculos, qual era o ideal proposto por Deus e como essa justificação se
realizava na vida do povo individual e coletivamente.
De acordo com Isaías a justiça que Deus propunha
era aquela que procede da sua própria essência, pois em referência a Iahweh o
profeta diz que ele é “o Deus santo [que]
mostra sua santidade pela justiça” (Is 5.16). Quanto à efetivação dessa
justiça, Iahweh ordena que, em ressonância à sua própria justiça, ela se manifeste
entre o seu povo, conforme escreveu Miquéias: “Ele declarou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor requer:
pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus”
(Mq 6.8).
Os termos mais recorrentes no Antigo Testamento
para designar justiça são tsedeq (70
vezes), tsedaqah (33 vezes) e tsaddiqi (110 vezes). São termos
derivados da raiz (tdq) e tem conformidade
com um padrão ético e moral que no Antigo Testamento corresponde à natureza e à
vontade de Deus [2]. O termo é atribuído ao
próprio Deus em relação ao seu caráter, pois Israel aprendeu que é na retidão e justiça que Deus salva. O uso mais antigo do termo encontra-se
ligado à função dos juízes cujos pronunciamentos e decisões deveriam estar
alinhados com a verdade sem nenhuma parcialidade (Lv 19.15). Outro uso frequente
encontra-se nas relações comerciais onde estabelecia que os pesos e medidas
deveriam ser absolutamente justos (Lv 19.36) [3].
No seu aspecto ético a palavra diz respeito à
conduta interpessoal onde a justiça, de acordo com o padrão legal vigente - mas
baseada também na justiça de Deus -, promove a qualidade nos relacionamentos e
o bem-estar entre todos. Assim vemos a ação dos profetas censurando tanto o
povo comum quanto os reis de Israel para que abandonem o mal, pratiquem a
justiça e desse modo sejam abençoados por Iahweh (Am 5.15, 24; Jr 22.1-4). No
aspecto forense o termo reclama a igualdade de todos, independente de sua
condição social ou financeira, perante a lei.
Um fato interessante a se observar é que no Antigo Testamento
não havia distinção entre a lei de Deus e a lei civil. Dessa forma se o
indivíduo era inocente ele era, ao mesmo tempo, justo. Isto é, por sua boa
conduta ele tinha base para suplicar a Deus que o livrasse do julgamento. No
aspecto pactual ou teocrático as partes envolvidas eram Iahweh e a nação de
Israel. A aliança é o caminho de retidão
e justiça para o povo com a
condição de que seja obedecida. Iahweh é justo quando, devido a essa aliança,
livra o seu povo de dificuldades, dos inimigos, dos ímpios, sendo assim não
apenas justo, mas também justificador [4].
Sem dúvida alguma o ideal de justiça apresenta-se
como expressão máxima no aspecto pactual ou teocrático, pois parte do próprio
Deus a decisão de promover entre o povo de Israel o bem-estar comum.
Entretanto, a sua efetivação deriva e depende dos atos de justiça de todos.
Nesse aspecto vimos que a nação constantemente falhou ao perverter o direito e
converter as estruturas de governo e poder em estruturas opressoras, e adotar
formas de relacionamento de dominação contrárias às preceituadas por Iahweh.
Assim, conforme Cozzoli, a justiça de Deus distancia-se consideravelmente da
justiça dos homens por se apresentar como justiça que liberta.
Essa justiça, com efeito, não é a justiça comutativa do credor, nem a
retributiva do amo, nem a distributiva do soberano, mas a justiça justificante
– a sedaqah – do “Deus
compassivo e clemente, misericordioso e fiel” (Ex 34,6). É a justiça que, mais
do que ser justa, procura “fazer justos”. [5]
2 A Justificação
e seu entendimento no
Novo Testamento
O Novo Testamento apresenta o termo Justificação
com características em certo sentido próprias do contexto greco-romano, e/mas
um pouco modificadas em face da evolução normal do termo na história, sua
reinterpretação na tradição rabínica tardia e, mais acentuadamente, na tradução
nem um pouco vernacular para o grego popular (Koinê) usado na época. Esse
termo, conforme justiça imputada a alguém, está presente em quase todos os
escritores do Novo Testamento, mas principalmente no Corpus Paulinum com
destaque especial para o livro de Romanos.
Porém - e não desprezando outros significados da
palavra -, em consonância com o Antigo Testamento, justiça designa a
integridade ético-religiosa que tem como padrão a vontade de Deus. Conforme
Lucas, justo era o “que andava em
todos os mandamento e preceitos do Senhor de forma irrepreensível” (Lc
1.6). Da mesma forma Mateus e Pedro usam o termo caminho de justiça para
designar, como no Antigo Testamento, aquele que conduz a sua vida conforme os
mandamentos de Deus (Mt 21.32; II Pe 2.21). O aspecto ético-religioso fica
ainda mais evidente quando o adjetivo justo está ligado a outros adjetivos de
mesma ordem dentro de um mesmo contexto como: santo e justo (At 3.14); justo e
temente a Deus (Lc 2.25; At 10.22); bom e justo (Lc 23.50). O Novo Testamento
apresenta ainda algumas fórmulas com inúmeros paralelos e mesma significação
que no Antigo Testamento como, por exemplo, “servir a Deus em santidade e
justiça” (Lc 1.75) [6].
Os termos gregos usados para designar justo e
justiça no Novo Testamento são, respectivamente, dikaios – e suas variantes que aparecem mais de 110 vezes; e dikaiosyne – 92 vezes. Esses termos,
conforme acima, são mais abundantes nos escritos paulinos e embora haja algumas
divergências apresentam-se comumente em dois aspectos básicos: a justiça que é
própria de Deus, e a justiça que ele outorga ao que crê [7].
A ênfase
na justiça de Deus tem o sentido de uma justiça que é, conforme Rm 1.17,
revelada ao pecador. Isto é, Deus é justo (tem a justiça) e justifica (revela a
justiça) àquele que tem fé em Jesus. Importa particularmente nesse enunciado o
termo “é revelada”, pois ele confere um caráter dinâmico ao conceito de justiça
de Deus. Na linguagem usual do Novo Testamento “ser revelado” ultrapassa um
ensino meramente teórico e tem a conotação de “ser ativado”; ela é revelada
pelo fato de se realizar (ou aparecer) transmitindo a justiça de Deus ao que
tem fé. A justiça de Deus tem um efeito sobre o que crê produzindo nele justiça.
Assim
entendido, o Apóstolo Paulo ao tratar com os gálatas sobre fé, justiça e
obediência à Lei (Gl 3.1-14), pôde citar o texto de Habacuc 2.4 (O justo por
sua fé viverá), pois, em outras palavras, esse texto diz que o homem pela fé se
torna justo, uma vez que nessa dinâmica a sua justiça entra no conceito e
conteúdo da justiça de Deus [8], e assim
justificado, ele viverá para que a justiça que ele agora vive se torne manifesta.
O tema justiça em Paulo vem muitas vezes
acompanhado e/ou em relação mútua com santificação. A correlação dos termos
deixa em destaque o entendimento de que aquele que é justo e santo
está capacitado e chamado a uma vida íntegra e ética, moralmente falando.
Escrevendo aos Coríntios o Apóstolo cita que “Cristo se tornou para nós justiça
e santificação” (I Co 1.30). Aos Romanos ele diz que os cristãos devem
apresentar os seus membros como escravos da justiça para a santificação (Rm 6.19).
E aos Efésios, instruindo como deve ser o procedimento daqueles que recebem o
Evangelho, Paulo enfatiza que o novo homem é criado “em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4.24) [9]. Assim, ser justo é ser santo, separado. Porém,
percebemos logo que não consiste em ser separado no modo que comumente se entende
e se requer que pratique, isto é, no sentido ascético da palavra, puramente
reservado e contemplativo. Se o cristão assim procede, a justiça e santidade na
forma que Deus requer jamais se efetivarão, pois elas se mostram nas “boas obras, as quais Deus de antemão
preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
A) No
contexto da Igreja nascente
Vemos em Atos que a marca distintiva do
cristianismo nascente era que não havia separação entre as necessidades
materiais ou físicas e necessidades espirituais de uma pessoa (At 2.42; 6.2-5).
A instituição dos Diáconos e a qualificação requerida para esse ministério
mostram como se empenhavam em cuidar do ser humano como um todo, o que faziam
mesmo antes de terem qualquer regulamentação ou orientação especificamente
doutrinal ou ministerial como se dela necessitassem ou dependessem para o serviço
(At 6.1-6). Por haver nascido no seio do judaísmo, o cristianismo absorveu o
modo de pensar, as práticas e conceitos que se baseavam na ética do Decálogo - ainda
que evoluídos e reinterpretados pelo judaísmo tardio - e sua aplicação na vida
individual e coletiva pois, conforme vimos, para efeito de relacionamentos eles
se aplicavam tanto no sentido de lei civil como religiosa abrangendo tanto o
indivíduo quanto a coletividade.
Para os primeiros cristãos, a consciência dos
deveres para com os menos favorecidos não perturbava a fé, antes a evidenciava visto
ser parte integrante dela. Seguindo ainda o modelo dos tempos apostólicos,
Inácio de Antioquia diz que a Igreja, antes de qualquer outra pretensão, queria
ser fundamentalmente uma fraternidade, ou seja, viver o amor em unidade, ajuda
mútua e partilha [10]. Se pudermos tomar
como sinônimas fé e vida prática igual a atos de pessoas que foram justificadas
e se sentem proclamadores dessa justiça ampla, conforme John Stott, vemos os primeiros
cristãos como pessoas engajadas que agiam naturalmente “sem sentir qualquer
necessidade de definir por que agiam dessa maneira” [11].
Ao longo dos séculos e mesmo a despeito dos desmandos que houve na Idade Média,
sempre houve também pessoas (como Francisco de Assis, Pedro Valdo e outros) que
buscaram manter o ideal de justiça do Reino de Deus dentro do ambiente de fé em
que viviam.
B) No
contexto da Reforma
O pensamento reformador de Lutero, ao contrário de
muito que foi dito a seu respeito, tem bases bíblicas que buscam orientar uma
prática de fé não alienante, isto é, enraizada na história de modo que fosse
promotora de justiça. Tanto foi assim que os que sucederam Lutero em suas
muitas expressões sempre se esforçaram por tratar o se humano como tal em nada
diminuindo sua dignidade independente de qual fosse a sua origem.
Lutero em seus escritos tratou prontamente de não
dissociar a Justificação da prática da justiça. Em primeiro lugar, como não
poderia deixar de ser, Lutero trata da radicalidade da mudança que a fé produz,
não como uma mera alteração em algumas qualidades e capacidades, mas uma
conversão das inclinações produzida pela fé salvadora; uma modificação e um
renascer da pessoa mesma. Em suas próprias palavras “Fé [...] é uma obra divina
em nós, que nos modifica e faz renascer de Deus [...] transformando-nos em
pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças,
trazendo consigo o Espírito Santo” [12].
Essa fé não permite uma vida ociosa, mas torna-se, em amor, uma força externamente
ativa. E conclui:
Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não
ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há
boas obras a fazer, e sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e
sempre está a realizar. Quem, porém, não realiza tais obras, é pessoa sem fé,
que anda às apalpadelas à procura da fé e de boas obras e nem sabe o que é fé
nem boas obras [...][13].
C) Nos
dias atuais
Penso que em nosso contexto a proclamação da
justificação pela fé somente continuará de certa forma inócua, com muitos
obstáculos e pronta rejeição se for levada de modo desencarnado, principalmente
dentro das igrejas históricas (e descendentes da Reforma) de cunho marcadamente
burguês elitista com sua liturgia exageradamente centralizada, restrita e
metódica que foge um pouco daquilo que poderíamos chamar de uma igreja do povo.
Por outro lado, como se abrir e ser inclusivista sem perder a identidade?
Em meados do século passado Karl Barth apontava
três elementos que deveriam ser apreciados de modo crítico nos quais a igreja
teria que fundamentar a sua atividade para se tornar relevante: a proclamação
deveria ser baseada em amplo conhecimento do seu tempo e contexto histórico-social,
o seu conteúdo segundo o padrão da Santa Escritura, e isso tudo sob a
orientação do Espírito Santo. A posição de Barth ainda é válida em seus três
componentes. Entretanto a observação a ser feita é que ao primeiro deles sempre
foi dada menor atenção e mostrado menos interesse. O temor fundamentava-se em
que a contextualização do entendimento da Bíblia em cada época, lugar e
situação pudesse comprometer a prioridade da Escritura e da tradição confessional
[14].
Entendo que o que a igreja precisa refletir é que a
tradição confessional não pode estar contra os propósitos do Evangelho e sim ao
seu serviço, pois foi com esse propósito que as declarações de fé foram
gestadas quando se fizeram necessárias. Shirley Guthrie, Teólogo
Norte-americano, comentando sobre as igrejas confessionais reformadas e o
correto entendimento de suas declarações fala do seu caráter e intenção visto
que elas procedem não de uma autoridade superior ou da burocracia de uma
hierarquia eclesiástica, mas do meio dos membros da igreja, que conscientes das
necessidades do Evangelho as desenvolveram junto com as autoridades da igreja sob a autoridade das Escrituras [15].
Devemos também frisar que muitas confissões (ou declarações) de fé foram
formuladas com aspectos que são restritos à sua condição geográfico-histórica e
reconhecidas por todos os cristãos reformados como autoridade provisória,
temporária e relativa sujeitas à revisão e correção [16].
É nesse aspecto que entra o nosso trabalho teológico no propósito de elaborar,
dentro do entendimento das nossas declarações, as ações da nossa proclamação de
modo que venham falar à nossa realidade apresentando resoluções que tragam à
luz expressões do Reino de justiça proposto pelo Deus da criação e vivido e
enfatizado de forma tão radical por Cristo.
Infelizmente o que temos visto em muitas igrejas é
que a contextualização do evangelho de modo a falar mais diretamente às pessoas
na situação própria em que vivem tem sido sacrificada ou posta de lado e, em
seu lugar - talvez até numa busca de se suprir (e usando um termo bastante
comum nos nossos dias) as chamadas necessidades de demanda - muitas igrejas têm
sucumbido a movimentos importados, inócuos e totalmente fora da nossa
realidade, e oferecido generalidades que levam do nada para lugar nenhum.
Outro tipo de proposta para a vida cristã, e que em
nossos dias está intimamente relacionada com o que foi dito anteriormente, é de
cunho altamente individualizante e de uma formulação e consistência
demasiadamente etérea e que não confronta o cristão com os problemas deste
mundo. Em muitos sentidos os ideais apresentados por esse cristianismo são por
demais celestiais, o que produz um descaso e apatia com respeito aos problemas
que nos cercam gerando uma ojeriza nos crentes em relação ao envolvimento
político e consequente inércia na busca por mudanças nas estruturas econômicas
e sociais reguladoras da justiça e bem-estar comuns.
Creio que isso seja decorrente de um entendimento
que há muito tem adentrado as igrejas e que consiste em um erro gravíssimo: a
separação de Salvação e Reino de Deus, dois elementos bíblicos que devem andar
juntos pois são, biblicamente falando, sinônimos. Essa separação tende a
baratear a natureza da salvação espiritualizando e individualizando-a a tal ponto
como se ela fosse apenas uma autotransformação, passaporte pessoal para o
paraíso ou experiência mística particular sem qualquer consequência moral e
social externa ao seu “detentor” [17].
Acima de todos esses casos, creio que o mal
primeiro seja a falta de instrução doutrinária adequada. Particularmente nesse
último ponto acredito que uma educação cristã de qualidade se faz necessária
para recuperar a doutrina bíblica da salvação na sua totalidade de forma que os
que são salvos saibam que são corresponsáveis e trabalhem na promoção da justiça
e fraternidade. Há a necessidade de uma educação bíblica, teologicamente
fundamentada e consistente que forme cristãos convictos sabedores do seu valor
e relevância para a comunidade onde vivem, e cidadãos com sua identidade cristã
marcada pelos valores do Reino de Deus, sabedores de que o que crêem e
professam, se plenamente praticado, é capaz de mudar situações e transformar contextos
e situações de mal em bem.
4 Uma reflexão com bases na Teologia
Latino-americana
A proclamação da Justificação pela fé é apaixonante quando a entendemos
plenamente, visto que traz conjuntamente um sentido libertário que há muito tem
sido esquecido dificultando sua assimilação e aplicação nas comunidades cristãs
que vivem situações deploráveis de miséria e injustiças. Infelizmente poucos
têm entendido que a nossa prática cristã é herdeira de uma teologia no mínimo imprópria
para o nosso tempo e contexto, mas na qual estamos profundamente mergulhados e
marcados.
Ao falarmos de Justificação muito do que
consideramos justo ou justiça passa por nossas mentes. Creio que isso acontece,
na verdade, e até mesmo de modo condicionado, para acentuar de forma
antagônica, a visão de injustiça, ou seja, o que temos de mais vivo pelo
contexto de anos e anos de dominação histórica, dentro e fora do nosso próprio tempo.
Assim, a justiça de Deus - descontextualizada e mal entendida teologicamente -
propagada em nossos dias, acaba aparecendo como tábuas de salvação às quais
podemos e buscamos desesperadamente nos agarrar para permanecermos vivos. O problema
que penso existir nesse aspecto é o que se tem visto em muitas igrejas, isto é,
elas acabam criando e transmitindo algumas subculturas que poderíamos, nesse
caso específico, nomear de teologia
do “salve-se quem puder”. Cada vez mais a preocupação de cada grupo é em cuidar
de si mesmos, da sua vida espiritual, e resolver os seus problemas.
A mensagem da justificação pela fé entendida somente
como ação direta de Deus, perdão de pecados e/ou libertação de culpas, e reconciliação
e paz apenas pessoais não tem muito efeito sobre diversas situações e contextos
na América Latina e, Segundo Elsa Tamez, fica defasada em relação à nossa
realidade, “pois se fala de perdão de pecados num sentido individual e
genérico; em reconciliação também num nível individual e abstrato, e em
ausência de participação humana sem nenhum esclarecimento sobre o sentido dessa
afirmação” [18]. Fica bastante estranho que
nesse contexto não seja enfatizado e nem mesmo mencionado o aspecto forense e
libertário dessa justificação. Continuando, Elsa Tamez escreve que
As atitudes ou dúvidas de certos cristãos a
respeito dos movimentos populares têm, como pano de fundo, essa discussão de
que Deus nos salva pela fé e não pelas obras. É claro que essas afirmações não
são falsas: Deus justifica e perdoa o ímpio, reconcilia a humanidade na pessoa
de Jesus Cristo, e o faz de maneira completamente gratuita, sem o esforço
humano como tal. Mas o abismo existente entre essa doutrina e a realidade de
nossas populações deixa que a primeira continue flutuando na ambiguidade, o
que, por sua vez, permite sua fácil manipulação [19].
Há uma estrutura dominante e pecaminosa frente a
qual os pecados individuais, ainda que não deixem de ser prejudiciais, são
incomparáveis. Nesse aspecto, essa justificação abstrata e individual é boa
nova mais para o opressor, que obviamente nem sente o seu pecado, que para o
oprimido [20].
A justificação como perspectiva de libertação
propõe a quebra desses sistemas conclamando os justificados sim, mas ainda não
libertos, a lutarem por direitos básicos deixados de ser usufruídos por um
entendimento errôneo do propósito de Deus para o seu povo. Walter Altmann diz
que esse entendimento individual e abstrato da justificação tem paralisado e
deixado desinteressado o povo no aspecto ético, uma vez que o contrário
pressupõe cooperação com Deus, mas que é falsa a atribuição dessa culpa à
justificação unicamente pela fé proposta por Lutero. Esse entendimento falso
resulta de uma interpretação errônea dos escritos de Lutero, pois a ação e
prática libertadora de modo algum é vista como cooperação no sentido de se
obter a justiça de Deus. Altmann observa ainda que nos escritos do reformador
“a história de Jesus pobre e desprezado, mas a favor de nós, dá de antemão uma
dimensão que ultrapassa plenamente qualquer enfoque meramente individualizante”
[21] e que “a liberdade diante de Deus
permite que o compromisso ético seja centrado exclusivamente na necessidade do
próximo, em vez de um disfarce para o benefício próprio” [22].
Ao contrário do que muitas vezes é dito ou
entendido na doutrina da justificação, vemos em Lutero uma experiência que
transcende o meramente eu, ou
respostas para problemas existenciais. Ela atingiu proporções históricas
trazendo a liberdade que toda uma geração ansiava.
Ao
apontar para a livre graça de Deus, Lutero abriu espaço para a libertação das
consciências e dos corpos. Na medida em que essa descoberta se desdobrava para
o terreno político, com Lutero fazendo eco das queixas da Nação Alemã contra a
espoliação eclesiástica interna e externa, e fortalecendo o poder político
nacional secular contra a exploração “externa” por parte de Roma, a libertação
teve que manifestar-se inevitavelmente também no terreno sócio-político-econômico [23].
Como podemos perceber, esse modo de se viver a nova
fé recebida em Cristo propunha que o ser humano fosse livre da alienação do
pecado e vivesse em paz, louvor e gratidão a Deus, mas que isso se manifestasse
visivelmente em serviço de amor ao seu próximo. Reiteradas vezes, porém, já
ficou claro que do ponto vista da práxis,
da ação, muito tem ficado a desejar.
No seu livro Novos ministros para uma nova
realidade o Pastor Caio Fábio faz
algumas considerações que considero úteis e das quais procurei extrair o
essencial que exponho a seguir.
A sua proposta para um evangelho mais aberto
às causas sociais é que deixemos de lado a visão contemplativa e acomodada imposta pela ignorância, pelo se enclausurar (talvez até natural pela falta de identidade
evangélica), e teremos muitos e inúmeros focos de uma nova perspectiva
teológica reestruturada e contextualizada nos moldes do século XXI, livres de
preconceitos e pensamentos fechados em si mesmo e nos guetos religiosos, pois é
de suma importância olhar para nós mesmos e reconhecermos que não estamos
produzindo nada e nem mesmo andando, em termos de novas perspectivas teológicas.
Um dos motes da reforma era “só Cristo é a encarnação de Deus, sendo Senhor e
salvador”. Infelizmente têm-se lido
desta forma apenas a partir das tradições das regras hermenêuticas nos
laboratórios teológicos e não do ponto de vista de sua totalidade, no
verdadeiro sentido de encarnação, de práxis, como foi na vida de Jesus, o único
que fez da palavra, carne, vida e história, e isto no chão do mundo, no meio da
existência humana. Os termos protestantes e reformadores propunham à Igreja uma
nova forma, um novo jeito de se encontrar como Igreja no projeto de Deus, como
reformadores da religião, mas também da realidade social, o que ela o foi por
algum tempo.
Hoje, apesar de sacralizarmos a cultura da reforma histórica, perdemos a
práxis na nossa vida cristã e nos tornamos os protestantes mais acomodados da história. Necessário é que a
igreja se desprenda de interesses individualistas e mesquinhos e busque uma
posição mais contextualizada e relevante de igreja brasileira, aonde venha
contribuir na nossa história sem se vender e se sujeitar a negociatas
políticas, onde possa assumir uma posição mais expressiva e, embasada
biblicamente, apresentar propostas aos problemas que assolam e dilaceram o
nosso país como as questões agrárias, questões de violência, exploração dos
trabalhadores, menor abandonado, educação, saúde, ecologia, etc. Será que a
nossa teologia sistemática poderia tratar destes assuntos? Enquanto alguns
vivem sua teologia de gabinete, milhões de brasileiros vivem tatuados de
símbolos cristãos, mas sem relação com o Cristo vivo. Uma estimativa mostra que
mais ou menos 2,3 a mais de evangélicos vão às igrejas em comparação a outros
segmentos, mas a falta de articulação, de propósitos, de objetividade não nos
permite mobilizar um trabalho social expressivo. Não encontramos eco nas
igrejas, pois a comunicação é barrada por interesses políticos eclesiásticos,
pela mesquinhez, pela inveja, pela incompreensão, pela falta de sensibilidade.
Se [...] formos capazes de assumir o que falarmos e as implicações da
nossa ação, não só faremos como teremos o apoio da sociedade. Assim seremos uma
igreja que faz frente às injustiças, uma igreja reformada sempre se reformando,
protestando e transformando através de uma prática mais humana, verdadeiramente
cristã e comprometida com a Palavra de Cristo [24].
Considerações finais
No segundo semestre de 2003, ao desenvolver um Trabalho
baseado no Salmo Quinze algumas proposições me chamaram particularmente a
atenção. Percebi que no início deste Salmo são feitas duas perguntas retóricas (aquelas
que servem apenas para despertar o interrogado, pois se supõe que ele já saiba
a resposta) que são o fio condutor da reflexão proposta pelo salmista (Sl 15.1).
Ao longo do trabalho, enquanto, passo a passo, examinava
os termos, ficaram ainda mais evidentes (e duras) as verdades expostas nesse
escrito, isto é, que as ações de determinada pessoa diante do seu próximo é que
medeiam e se tornam condições básicas para que essa pessoa se adentre, conforme
o texto, ao santuário, à presença de Iahweh. O fato de viver as condições
estipuladas por Deus no relacionamento diário com o próximo constitui um ato de
lealdade à lei de Deus cujo foco central em todo o Salmo é a justiça. O Salmo é
de um conteúdo totalmente ético-moral e mostra que o culto a Deus tem a sua
essência na obediência em viver os preceitos por ele estipulados, visto que
obedecer é melhor do que os sacrifícios (I Sm 15.22). Em outras palavras, se
tivéssemos que responder quem estaria apto a estar na presença de Deus a
resposta seria simples: o que pratica a justiça.
De acordo com o que vimos nesse breve ensaio, concluímos
que ao tratar a questão da justificação pela fé devemos estar bastante atentos,
tanto em termos de vida cristã quanto pastorais pois, de modo geral, as
responsabilidade das quais estamos conscientes se apresentam carregadas de um
contexto onde faltam qualificados
para a presença de Deus. Estão faltando elementos no culto que oferecemos a
ele, elementos que nos tornam aptos a permanecer no seu santo monte e adentrar
ao seu santuário.
Entretanto, podemos também nos sentir agradecidos
pela consciência despertada e pela possibilidade sempre aberta de renovação e
um novo concerto, pois as suas misericórdias não tem fim e renovam-se a cada
manhã (Jr 3.22, 23), misericórdias, estas, que a Igreja de Deus precisa urgentemente
praticar.
Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Baseado em: Justificação pela fé – como proclamá-la em meio às injustiças? Trabalho
apresentado como requisito parcial para aprovação na Disciplina de Teologia
Sistemática III. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará,
2004.
Referências bibliográficas
[1] PESCH, Otto Hermann. Justificação. In: Dicionário de conceitos fundamentais de
teologia. São Paulo: Paulinas, 1993,
p. 443.
[2] H.G.S. Justiça.
In: UBS Dictionary - BibleWorks for
Windows version 4.0.026e. BibleWorks LCC, 1998.
[3] STIGERS, Harold G. Justiça. In: Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1261/4.
[4] STIGERS, op. cit., p. 1261/4.
[5] COZZOLI, M. Justiça. In: Dicionário de teologia moral. São
Paulo: Paulus, 1997, p. 673.
[6] BLAESER, P. Justiça. In: Dicionário de teologia bíblica.
3ª ed. São Paulo: Loyola, 1983, v.2, p. 601.
[7] BLAESER, op. cit., p. 602.
[8] BLAESER, op. cit., p. 602/3.
[9] BLAESER,
op. cit., p. 607.
[10] HAMMAN, H.- G. A
vida cotidiana dos primeiros cristãos (95-197). São Paulo: Paulus,
1997, p. 131.
[11] STOTT, John R. W. O
cristão em uma sociedade não cristã. Niterói: Vinde, 1989, p. 17.
[12] EBELING, Gerhard. O
pensamento de Lutero - uma introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988,
p. 131 – Apud LUTERO, Martinho. Pelo
Evangelho, p. 184 (1522).
[13] EBELING,
op. cit., p. 130.
[14] GUTHRIE, Shirley C. Sempre
se reformando - a fé reformada em um mundo pluralista. São Paulo: Pendão
Real, 2000, p. 43/4.
[15] GUTHRIE,
op. cit., p. 47/8.
[16] IGREJA PRESBITERIANA (EUA).
A
natureza confessional da igreja. In: Grandes temas da tradição reformada. São Paulo: Pendão Real,
1999, p. 4/5.
[17] STOTT, op. cit., p. 47/8.
[18] TAMEZ, Elsa. Contra toda condenação – a
justificação pela fé, partindo dos excluídos. São
Paulo: Paulus, 1995, p. 20/2.
[19] TAMEZ,
op. cit., p. 20/2.
[20] TAMEZ, op. cit., p. 20/2.
[21] ALTMANN, Walter. Lutero e libertação – releitura de Lutero
numa perspectiva Latino-americana. São Paulo: Ática e Sinodal, 1994, p. 87/8.
[22] ALTMANN, op. cit., p. 87/8.
[23] ALTMANN,
op. cit., p. 89.
[24] FILHO,
Caio Fábio de Araújo. Novos ministros
para uma nova realidade. Brasília: Sião Empreendimentos Evangelísticos,
1987, p. 27/9, 30/1.
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