sábado, 23 de abril de 2016

Conhecimento e Fé - A busca de Deus na Antropologia Filosófica [1]


Baseados na leitura do livro bíblico chamado Gênesis, ou simplesmente concebendo a ideia de uma gênese, isto é, de um ponto original de onde derivam todas as coisas, podemos considerar que há uma inter-relação e consequente dependência do que se foi gerado em relação ao seu genitor. Dentro de um conceito bíblico de criação, ainda que possamos deduzir que todas as criaturas dependam de Deus não se pode dizer que ele forme parte da vida de todos, com exceção do ser humano por ser ele o único capaz de conceber a ideia de um deus. Essa particularidade confere a ele certa autonomia ontológica merecendo, por isso, o nome de homo religiosus, um termo que não remete unicamente à ideia de um deus, mas a tudo o que é considerado sagrado, particularmente por sua condição de fascinante e inatingível.
Por ser, essencialmente, um ser religioso, a existência humana é notadamente marcada pela referência às coisas sagradas de onde recebe os seus valores mais fundamentais, e das quais procura abstrair os conceitos de bem, justiça, verdade e neles viver como imitadores da essência do deus entendendo-o como o grande expectador de suas ações na presença e reflexo do qual vivem (COMBLIN, 1985).

A busca como autotranscendência
Desde as suas origens a localização do homem em relação ao mundo - ou mundos - que o cerca é considerada problemática. Desse modo a busca do ser humano por respostas foi sempre uma busca pelo absoluto e transcendente a partir do qual ele poderia se localizar e responder a si mesmo quem é. Na antiguidade clássica grega as respostas foram buscadas sempre a partir de uma perspectiva cosmocêntrica. Posteriormente, na filosofia cristã, de uma perspectiva teocêntrica e, na perspectiva filosófica moderna e contemporânea, antropocêntrica, ou seja, do homem como ponto de partida de toda busca de entendimento, inclusive da revelação de Deus.
Ao contrário do pensamento grego clássico onde a vida humana é parte do todo do cosmo, no pensamento hebraico e cristão a história da humanidade se desenvolve especificamente nas suas relações com Deus tornando-se história da salvação. O que se pode observar, entretanto, é que em todas as formas de pensamento, mesmo no início da teoria antropocêntrica, todos são estudos de cunho metafísico onde o ser humano está em busca do perfeito e procura apreender não apenas concepções e conhecimento ético-moral prático, mas um saber mais profundo do mundo, de si mesmo e, especialmente, de Deus (MONDIN, 1996).
Apesar de na teologia ainda prevalecerem as posições teocêntrica - e cristocêntica - já é considerável o número de partidários da perspectiva moderna e contemporânea considerada mais oportuna para o nosso tempo. Eles observam que a própria revelação tem caráter antropocêntrico, pois tudo o que Deus propôs, desde a criação e apontando para a consumação, está direcionado ao ser humano (MONDIN, 1996). Rudolf Bultmann sistematizou seu pensamento sobre a Teologia a partir dessa perspectiva, fundamentou sua exposição cristológica com bases na soteriologia e mesmo os mais críticos de seus contemporâneos acham difícil fazer objeções a este procedimento uma vez que deu tantos resultados. Há, entretanto, uma posição mais moderada que, partindo de uma cristologia paulina, busca desenvolver um nexo entre ambas a fim de que, tanto uma metafísica cristã quanto um humanismo cristão sejam evitados (KÄSEMANN, 2003).
Quanto aos níveis como a percepção e entendimento de Deus são captados pelos seres humanos e qual a sua participação em termos de atividade ou passividade não há consenso entre os estudiosos por serem vistos como muitos e variados. Por séculos de estudos uma questão que sempre esteve à frente diz respeito à consistência ontológica do homem e sua capacidade de apreensão de Deus. Muitas doutrinas surgiram com o intuito de responder, porém, ao longo dos tempos, se resumiram a três tendências principais: o minimalismo e maximalismo antropológico e, entre eles, a tendência moderada.
1) A tendência minimalista ou minimalismo antropológico limita duramente a consistência ontológica do homem a ponto de privá-lo da capacidade de alcançar a Deus, ainda que só com a mente. Característica específica dessa tendência é a negação da teologia natural, ou seja, do conhecimento de Deus pela razão. Essa doutrina, de longa tradição entre os protestantes, remonta a Lutero. No auge do liberalismo teológico Karl Barth também defendeu essa doutrina denunciando toda tentativa de fazer calar a Palavra de Deus pela razão. Barth dizia que todo o conhecimento verdadeiro vem de Deus, o “Todo Outro” e que o homem, essencialmente decaído de sua unidade originária, não pode mais alcançá-lo por suas forças. Emil Brunner, por sua vez, não foi tão rígido quanto Lutero e Barth e defendeu uma variante dessa doutrina. Ele dizia que, se Deus criou o homem para se relacionar com ele, deve haver neste um ponto de contato que - ele identificava com a imago Dei - que não foi destruída pelo pecado, mas somente pervertida. Ainda que pequena e distorcida, há no ser humano uma essência que o remete à origem perdida. Diversos teólogos contemporâneos também formularam e apresentaram suas versões e variações sobre a tendência minimalista. Dentre eles temos Dietrich Bonhöeffer, Rudolf Bultmann, Paul Tillich e outros (MONDIN, 1986);
2) Os teólogos da tendência moderada discordam do pessimismo do pensamento minimalista e, sem diminuir a gratuidade da graça e a absoluta transcendência de Deus, julgaram dever reconhecer no homem uma consistência ontológica bem mais considerável atribuindo a ele a capacidade ativa de conhecer a Deus e a capacidade passiva de receber a vida divina. Fundamentando suas convicções nos argumentos de Tomás de Aquino segundo o qual a graça não suprime a natureza, mas a aperfeiçoa, o teólogo católico Pietro Parente defende que o homem, não obstante a humildade da sua carne corruptível, domina o universo do inconsciente e, por sua livre vontade e através da contemplação do que foi criado é capaz de alcançar a Deus conhecendo-o e amando-o. Considerado o mais genial teólogo protestante nascido na América no Séc. XX, Reinhold Niebuhr, diversamente dos outros autores de mesma confissão dizia que, ainda que a imagem humana tenha sido desgastada e obscurecida pelo pecado, e tenha se tornado, como dizia Lutero, infecta e suja a ponto de impedir que dela formemos um conceito, segue, no entanto, à procura de uma compreensão e de uma definição da imagem de Deus (MONDIN, 1986);
3) A tendência maximalista, também denominada maximalismo antropológico, eleva exageradamente a consistência ontológica do homem e atribui à natureza humana uma autonomia tal que comprometem a gratuidade de Deus e sua absoluta transcendência. Os expoentes desse pensamento são os teólogos católico-romanos Pierre Teilhard de Chardin, Karl Rahner e Henri De Lubac, e o teólogo protestante, Wolfhart Pannenberg (MONDIN, 1986). Baseando-se na teoria da evolução, Teilhard de Chardin procura elaborar uma visão cósmica que abranja numa só perspectiva o mundo da ciência e o da fé e, a partir dela, mostrar que a consciência, a reflexão e o espírito humano constituem o nível máximo de perfeição alcançado pela evolução até hoje, mas que prosseguirá evoluindo até assumir uma estruturação unitária que configure aquele Corpo místico perfeito, cujos germes foram já plantados por Cristo, o Ponto Ômega que torna possível a unificação final dos espíritos. Karl Rahner - adepto da filosofia de Tomás de Aquino - argumenta que uma teologia antropocêntrica tem que ter suas bases solidificadas no pensamento filosófico moderno por ser esta a mais adequada para uma abordagem do ser humano frente à revelação. Porém, como ele próprio advoga, não mais na perspectiva cosmocêntrica como a viram os escolásticos, mas em conformidade com a autocompreensão que o homem do nosso tempo tem de si mesmo. A antropologia de Teilhard de Chardin e Karl Rahner encontrou eco no jovem teólogo protestante Wolfhart Pannenberg. Ele  qualifica a autotranscendência como abertura ilimitada para o mundo visto que na sua experiência e no seu comportamento o ser humano não é limitado a nenhum ambiente determinado. Mesmo quando busca a autotranscendência em todas as suas produções e transformações que realiza na natureza, ele não encontra nelas satisfação duradoura. A sua meta está para além da imagem momentânea que ele tem do mundo, bem como da brevidade da produção cultural que atingiu, pois aquilo que é criado é também logo deixado para trás tornando-se busca contínua. Dado que o movimento de autotranscendência sempre pressupõe uma meta e que essa meta está para além de tudo o que ele abarcou com o pensamento, quis com a vontade, imaginou pela fantasia e realizou pela ação, essa meta só pode ser entendida e considerada como a procura de Deus (MONDIN, 1986).

Revelaçõ e conhecimento humano
As primeiras respostas que o ser humano encontra a respeito de si mesmo são as que o diferem dos animais e das outras coisas do mundo, pois é certo que em todos os sentidos ele os supera. Mostrando-se insatisfeito com o que tem realizado e com todos os objetivos já alcançados então ele busca a autotranscendência, a superação de si mesmo, busca o que está além de si, mas que se apresenta como possibilidade, pois o homem não é somente o que é, mas também tudo o que não é, tudo o que ainda lhe falta. A sua transcendência é o que ele é em potência; é o seu porvir (MONDIN, 1996).
Viktor Frankl, criador da Logoterapia - também chamada Terceira Escola Vienense de Psicoterapia -, baseando suas pesquisas psiquiátricas também no campo da antropologia, sustenta que a busca por superação e significação da vida se dá ao se entender ser responsável, isto é, um ser capaz de se autodeterminar e se orientar por valores inatos, daí a importância da sua espiritualidade (PETER, 1999). Frankl acrescenta ainda que esse ser ao transcender eleva-se sobre o somático e o psíquico e entra na dimensão espiritual, no espaço humano, propriamente dito, “pois nem o somático nem o psíquico isolados constituem o que há de propriamente humano. Antes, ambos representam apenas facetas da existência humana” (FRANKL, 1976, p. 44).
Ao se lançar em busca de superação e de respostas para sua existência o ser humano mostra a angústia da consciência de que não é um ser em paz e completo em si mesmo e que, se sua vida é mais do que a simples existência biológica, então ele precisa de um transcendente absoluto para fundamentar a sua própria transcendência. Sendo assim ele precisa de um deus que se torne o valor último do seu existir.
A teologia cristã vem ao encontro desse pensamento e propõe que Deus no seu infinito amor, misericórdia e graça (e não desconsiderando aqui as etapas ou níveis da consistência ontológica) vem ao encontro das contingências existenciais da criatura humana e, inicialmente, numa Revelação Geral (TEIXEIRA, 1986), ou seja, a todos os seres humanos, por meio das coisas criadas no universo confere a eles, através da relação que já há entre ambos (ou pela relação necessária de dependência ontológica), capacidade suficiente para entendê-lo e conhecê-lo como Criador, mas também como sustento de sua autoafirmação e existência.
Fato é que em todos os graus de civilização o sentimento de busca do sagrado e o anseio em se relacionar com ele são os mesmos. A partir da concepção cristã podemos concluir que a explicação da resistência do fenômeno religioso através dos tempos é que há reciprocidade entre Criador e criatura, isto é, não é só o ser humano que quer ter relações com Deus, mas Deus também as quer e para isso inicialmente usa as obras visíveis da criação (TEIXEIRA, 1986). Ele torna-se objetivamente e de fato conhecido, não deixando o elemento humano, ou seja, a outra parte da relação num mar de subjetividades.
Esse aspecto do ser humano como ser espiritual em busca de Deus é comparado por Frankl a uma pessoa tentando encontrar um objeto que perdeu na grama. Essa pessoa apalpa, observa atentamente, afasta as folhas com cuidado e procura... Entretanto, o que torna possível à pessoa encontrar o objeto é o fato de ela já conhecer a sua cor, forma e tamanho (FRANKL, 1997). No magnífico livro das Confissões Santo Agostinho apresenta bem esse princípio em um de seus escritos mais belos, poéticos e inspiradores. O texto diz:
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! [...] Estavas comigo, mas eu não estava contigo. [...] Tu me chamaste, e o teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te experimentei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz (AGOSTINHO, 2001, p. 295).
Entendemos que Santo Agostinho não apenas experimentou, mas também expressou de forma fantástica a consciência que o ser humano tem de sua condição sobre-humana. Se ele busca a Deus é porque já o conhece seja pelas obras da criação, seja pelo fato de sua fragilidade ante as situações de sua existência, seja por arquétipos, etc. Parece haver uma necessidade primordial em se acreditar e o que dá sentido à busca é a fé construída sobre o conhecimento já revelado. Frankl acrescenta ainda que o fato de se ver como um ser no mundo, mas com lastros além, num ente superior, é que solidifica no ser humano essa fé (GOMES, 1992).
Rudolf Otto, iniciador do estudo fenomenológico do sagrado, observa que essa concepção se apresenta ao homem como numinoso, isto é, na majestade da sua divina onipotência e, portanto, inatingível pela razão. Percebendo a própria nulidade e tomado de medo o homem tende a desaparecer. A profundidade do contato inicialmente o atemoriza, mas ao mesmo tempo o atrai pelo fato de o transcendente deixar-se revelar, não obstante ser o forte e “Totalmente Outro”. Diante do mistério que fascina e atemoriza, o numinoso torna-se o santo e nasce o sentimento de infinito respeito, por seu valor absoluto (MONDIN, 1997).
Ainda sob a bandeira da fenomenologia, G. van der Leeuw afirma essa perspectiva apontando duas faces do sagrado: a do mistério e a da experiência vivida no encontro com a “‘alteridade surpreendente”. Van der Leeuw apresenta assim um conceito de evolução na definição do homo religiosus: “é o homem que crê na presença de uma força, o sagrado, e que adapta o seu comportamento a essa crença” (MONDIN, 1997, p. 39). Por fim, Mircea Eliade, para tratar do mesmo assunto, propôs o termo Hierofania (do grego Hieros = sagrado, e faino = mostrar, aparecer) e acrescenta que a evolução do entendimento do sagrado se dá em situações particulares da história humana, ou seja, o sagrado é passível de descrição quando se manifesta no espaço e no tempo, e conclui que este sagrado não pode ser criação da mente humana visto que o homem só o descobre porque ele se revela, e revela-se como aquele que sustenta o mundo, guiando e governando-o e, desse modo, conferindo sentido à existência humana (MONDIN, 1997).
O reconhecimento de que há um ser sobrenatural e que dele dependem todos os seres criados gera, como já frisamos, dependência e confiança. Essa confiança consiste em se acreditar não apenas que todas as coisas foram criadas, mas que também serão mantidas e preservadas.  A convicção íntima de que tudo foi criado com um propósito configura-se em uma relação de fé que leva o ser humano a prestar ao deus reverência e culto, inicialmente, de modo individualizado e interior e, posteriormente, de caráter aberto, coletivo e em templos físicos (TEIXEIRA, 1986).
Se, efetivamente, há uma busca recíproca entre Criador e criatura onde de forma graciosa e amorosa Deus se faz cognoscível ao espírito humano concedendo-lhe capacitação e fé para que o relacionamento de fato se efetive, concluímos, então, que o ser humano encontrou a complementaridade no relacionamento, de um lado em amor e graça providentes e, de outro, em profunda reverência, temor e fé.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor

[1] Texto introdutório de: SOARES, Valdenir. Uma fé viva e eficaz: propostas para a vida cristã a partir de Romanos 1.7-17. Trabalho de Conclusão de Curso. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2004.

Referências bibliográficas

AGOSTINHO, Santo, 354-430. Confissões. 14ª ed. São Paulo: Paulus, 2001.
COMBLIN, José. Antropologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985, tomo I.
FRANKL, Viktor Emil. A psicoterapia na prática - uma introdução casuística para médicos. São Paulo: EPU, 1976.
FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus. 4ª ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal e Vozes, 1997.
GOMES, José C. Vitor. Logoterapia - a psicoterapia existencial humanista de Viktor Emil Frankl. São Paulo: Loyola, 1992.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo: Teológica e Paulus, 2003.
MONDIN, Battista. Antropologia teológica - história, problemas, perspectivas. São Paulo: Paulinas, 1986.
MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. 8ª ed. São Paulo: Paulus, 1996.
MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de Teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 1997.
PETER, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo: Paulus, 1999.
TEIXEIRA, Alfredo Borges. Dogmática evangélica. 3ª ed. São Paulo: Pendão Real, 1986.