quinta-feira, 23 de junho de 2016

O Cristão e os Jogos Olímpicos


Todo atleta em tudo se domina;
eles, para alcançar uma coroa que logo perece;
nós, porém, para ganhar uma coroa que dura para sempre
I Co 9.25

Durante o mês de agosto será realizada no Rio de Janeiro (Brasil) a 31ª edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Considerado o maior evento esportivo do planeta, os Jogos Olímpicos causam uma efervescência mundial com grande destaque nas principais mídias, como Televisão, Internet, Jornais, Revistas, enfim, em todos os meios de comunicação. Chamados de Jogos Olímpicos de Verão, o evento no Brasil terá como slogan a auspiciosa frase Um novo mundo. Esta será a primeira realização dos jogos na América do Sul (segunda vez na América Latina), e contará com a participação de 206 países e um número estimado de 12.500 atletas divididos em 28 modalidades [1].
Por todas as expectativas que produz, os anos que antecedem os jogos são preenchidos de intenso trabalho onde diferentes tipos de pessoas são observadas, examinadas, escolhidas, exaustivamente treinadas, e postas sob o compromisso de se empenharem e honrarem seus países nas diversas modalidades da competição. Quando finalmente chega a data dos jogos, as delegações, oriundas das mais remotas localidades do mundo, são enviadas ao local das competições, levando seus representantes cheios de convicções e esperanças.
Entretanto, engana-se quem pensa que esses atletas levam na bagagem apenas compromissos e propósitos patrióticos; levam também muito de pessoal, particularmente a determinação de mostrar seu preparo, vencer seus adversários e conquistar uma das três tão sonhadas medalhas olímpicas.
Ao considerar o conjunto de coisas que cercam a vida destes esportistas, chama-nos a atenção os muitos paralelos que podemos distinguir entre a vida de um atleta e de alguém que se propôs a seguir a Cristo. O Apóstolo Paulo eventualmente presenciou no seu tempo determinados jogos públicos que faziam parte dos costumes tanto de gregos quanto de romanos. Atento observador, nos seus escritos ele constantemente faz das competições esportivas e do atleta suas figuras preferidas para falar ao cristão o quanto são necessárias determinadas qualidades para se chegar a ser considerado, de fato, um vencedor.
O texto bíblico citado no início desta reflexão fala que todo atleta precisa ter um autodomínio capaz de subjugar todas as suas vontades e preferências debaixo de um único propósito: vencer a competição. Para isso são necessárias algumas qualidades que Paulo usava em referência a si mesmo e a seus companheiros de ministério. Dentre elas podemos citar a determinação, o preparo, a abnegação e a perseverança.
Em sua Carta aos Gálatas, na defesa que faz do seu apostolado, Paulo diz que ao entender a obra de Cristo em sua vida e o chamado para anunciar o Evangelho, não consultou nem se justificou diante de ninguém, mas começou imediatamente a anunciar as boas notícias de salvação entre os gentios (Gl 1.11-17). Isso é determinação!
No final da Carta endereçada aos Efésios, Paulo fala de uma luta que o cristão deve enfrentar, vencer e permanecer de pé. Para isso, mais que atenção e coragem, é necessário estar bem equipado (Ef 6.10-18). Isso é preparo!
Em muitos de seus escritos, ele revela que ao se decidir por Cristo e pelo anúncio do Evangelho já não fazia mais caso de suas próprias vontades. Em alguns momentos o Apóstolo cita privações de coisas básicas, como moradia, roupas, e até mesmo alimento, (I Coríntios 4.10, 11). Em outros textos temos testemunhos de prisões, açoites e riscos de morte (Atos 16.23; II Coríntios 11.23, 26). E isso tudo por amor a Cristo e àqueles com quem compartilhava, de forma vívida, o Reino de Deus. Isso é abnegação!
Por fim, ainda que o Apóstolo amasse igualmente aqueles a quem se dirigia, ao lermos determinadas cartas vemos que em certos momentos alguns cristãos necessitaram de um cuidado mais dedicado e intenso. A indignação pela inconstância dos gálatas e pelos repetidos erros dos coríntios nos mostra onde e o quanto o seu trabalho, suas lágrimas e o seu amor eram mais exigidos (Gálatas 3.1-5; I Coríntios 3.1, 2; II Coríntios 6.14-16). Isso é perseverança!
Perto do fim de sua vida Paulo pôde afirmar que havia combatido o bom combate, terminado a corrida e guardado a fé, deixando-nos a certeza de que, assim como o prêmio recebido por vencer um desafio, todo cristão vitorioso receberá das mãos do Senhor a sua coroa (II Timóteo 4.7-8). Ele nos mostra que da mesma forma que a competição de um atleta, o caminho do cristão é, ao mesmo tempo, árduo e sublime, difícil, mas possível, tem dores, suor, lágrimas, mas tem também honra e glória que permanecerão para sempre.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor

Referência
[1] fonte: https://www.rio2016.com

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Justificação pela fé – como proclamá-la em meio às injustiças?


Como anunciar a justificação pela fé num mundo de injustiças?
Confesso que não é tarefa fácil responder a tal questão visto que o nosso olhar se põe de um ponto, se não privilegiado, pelo menos em melhores condições que o de milhares ou milhões de pessoas que tem apenas na fé motivos para iniciar (ou seria continuar) a rotina de um novo dia que se apresenta com as mesmas perspectivas já vencidas e carimbadas do dia que passou.
Entretanto, considero de extremo valor a pesquisa por abrir caminhos que possam nos orientar numa atividade pastoral saudável e condizente com os propósitos de Deus, e descortinar aspectos da sua Palavra que mostrem a plenitude de tais propósitos.
Para avançarmos um pouco no entendimento do conceito de justiça como Deus requer estaremos fazendo uma breve apresentação dessa palavra e como era percebida nos ambientes do Antigo e do Novo Testamentos bem como ao longo da história da Igreja.
Para fins de reflexão estaremos trazendo algumas considerações dentro da Teologia Latino-americana tendo por bases algumas linhas do pensamento de Lutero, e em textos de personalidades do nosso próprio tempo que pensam a vida em comunidade a partir da práxis cristã nas igrejas atuais.

O Antigo Testamento não fala de Justificação, mas de justiça (justiça de Deus e dos homens - reis, governantes, juízes etc.) onde a palavra aparece geralmente na forma causativa do verbo com o sentido de fazer justo, declarar justo, proclamar justo [1]. Ao tratar do termo justificação, o olhar veterotestamentário recai sobre aquele de quem, acreditavam, provinha toda a justiça, pois Iahweh é, em inúmeros textos da Antiga Aliança, descrito como O Justo, particularmente nos ditos do profeta Jeremias que o enuncia em dois momentos como Iahweh Tsedeqnu, o “Senhor justiça nossa” (Jr 23.6; 33.16) capaz de estabelecer a sua vontade na restauração de Jerusalém suscitando um rei que aja com justiça. A justificação que busca firmar suas bases naquele que é justo tem o seu referencial primeiro no Decálogo onde de forma verticalizada - mas principalmente horizontal - medeia os relacionamentos entre as partes envolvidas quer sejam das pessoas com o seu Deus ou - e nesse aspecto predominantemente - no relacionamento do dia-a-dia de homens e mulheres do povo israelita.
Ao colocarmos “aquele que justifica” (Is 50.8) em evidência e, juntamente com o Decálogo, os apresentarmos como referenciais de justiça, automaticamente entramos na história do povo de Israel, nas suas relações internamente como sociedade política organizada, e nas suas relações com Iahweh, seu Deus. Assim sendo necessitamos entender o conceito corrente de justiça em Israel ao longo dos séculos, qual era o ideal proposto por Deus e como essa justificação se realizava na vida do povo individual e coletivamente.
De acordo com Isaías a justiça que Deus propunha era aquela que procede da sua própria essência, pois em referência a Iahweh o profeta diz que ele é “o Deus santo [que] mostra sua santidade pela justiça” (Is 5.16). Quanto à efetivação dessa justiça, Iahweh ordena que, em ressonância à sua própria justiça, ela se manifeste entre o seu povo, conforme escreveu Miquéias: “Ele declarou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor requer: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus” (Mq 6.8).
Os termos mais recorrentes no Antigo Testamento para designar justiça são tsedeq (70 vezes), tsedaqah (33 vezes) e tsaddiqi (110 vezes). São termos derivados da raiz (tdq) e tem conformidade com um padrão ético e moral que no Antigo Testamento corresponde à natureza e à vontade de Deus [2]. O termo é atribuído ao próprio Deus em relação ao seu caráter, pois Israel aprendeu que é na retidão e justiça que Deus salva. O uso mais antigo do termo encontra-se ligado à função dos juízes cujos pronunciamentos e decisões deveriam estar alinhados com a verdade sem nenhuma parcialidade (Lv 19.15). Outro uso frequente encontra-se nas relações comerciais onde estabelecia que os pesos e medidas deveriam ser absolutamente justos (Lv 19.36) [3].
No seu aspecto ético a palavra diz respeito à conduta interpessoal onde a justiça, de acordo com o padrão legal vigente - mas baseada também na justiça de Deus -, promove a qualidade nos relacionamentos e o bem-estar entre todos. Assim vemos a ação dos profetas censurando tanto o povo comum quanto os reis de Israel para que abandonem o mal, pratiquem a justiça e desse modo sejam abençoados por Iahweh (Am 5.15, 24; Jr 22.1-4). No aspecto forense o termo reclama a igualdade de todos, independente de sua condição social ou financeira, perante a lei.
Um fato interessante a se observar é que no Antigo Testamento não havia distinção entre a lei de Deus e a lei civil. Dessa forma se o indivíduo era inocente ele era, ao mesmo tempo, justo. Isto é, por sua boa conduta ele tinha base para suplicar a Deus que o livrasse do julgamento. No aspecto pactual ou teocrático as partes envolvidas eram Iahweh e a nação de Israel. A aliança é o caminho de retidão e justiça para o povo com a condição de que seja obedecida. Iahweh é justo quando, devido a essa aliança, livra o seu povo de dificuldades, dos inimigos, dos ímpios, sendo assim não apenas justo, mas também justificador [4].
Sem dúvida alguma o ideal de justiça apresenta-se como expressão máxima no aspecto pactual ou teocrático, pois parte do próprio Deus a decisão de promover entre o povo de Israel o bem-estar comum. Entretanto, a sua efetivação deriva e depende dos atos de justiça de todos. Nesse aspecto vimos que a nação constantemente falhou ao perverter o direito e converter as estruturas de governo e poder em estruturas opressoras, e adotar formas de relacionamento de dominação contrárias às preceituadas por Iahweh. Assim, conforme Cozzoli, a justiça de Deus distancia-se consideravelmente da justiça dos homens por se apresentar como justiça que liberta.
Essa justiça, com efeito, não é a justiça comutativa do credor, nem a retributiva do amo, nem a distributiva do soberano, mas a justiça justificante – a sedaqah – do “Deus compassivo e clemente, misericordioso e fiel” (Ex 34,6). É a justiça que, mais do que ser justa, procura “fazer justos”. [5]

2 A Justificação e seu entendimento no Novo Testamento
O Novo Testamento apresenta o termo Justificação com características em certo sentido próprias do contexto greco-romano, e/mas um pouco modificadas em face da evolução normal do termo na história, sua reinterpretação na tradição rabínica tardia e, mais acentuadamente, na tradução nem um pouco vernacular para o grego popular (Koinê) usado na época. Esse termo, conforme justiça imputada a alguém, está presente em quase todos os escritores do Novo Testamento, mas principalmente no Corpus Paulinum com destaque especial para o livro de Romanos.
Porém - e não desprezando outros significados da palavra -, em consonância com o Antigo Testamento, justiça designa a integridade ético-religiosa que tem como padrão a vontade de Deus. Conforme Lucas, justo era o “que andava em todos os mandamento e preceitos do Senhor de forma irrepreensível” (Lc 1.6). Da mesma forma Mateus e Pedro usam o termo caminho de justiça para designar, como no Antigo Testamento, aquele que conduz a sua vida conforme os mandamentos de Deus (Mt 21.32; II Pe 2.21). O aspecto ético-religioso fica ainda mais evidente quando o adjetivo justo está ligado a outros adjetivos de mesma ordem dentro de um mesmo contexto como: santo e justo (At 3.14); justo e temente a Deus (Lc 2.25; At 10.22); bom e justo (Lc 23.50). O Novo Testamento apresenta ainda algumas fórmulas com inúmeros paralelos e mesma significação que no Antigo Testamento como, por exemplo, “servir a Deus em santidade e justiça” (Lc 1.75) [6].
Os termos gregos usados para designar justo e justiça no Novo Testamento são, respectivamente, dikaios – e suas variantes que aparecem mais de 110 vezes; e dikaiosyne – 92 vezes. Esses termos, conforme acima, são mais abundantes nos escritos paulinos e embora haja algumas divergências apresentam-se comumente em dois aspectos básicos: a justiça que é própria de Deus, e a justiça que ele outorga ao que crê [7].
A ênfase na justiça de Deus tem o sentido de uma justiça que é, conforme Rm 1.17, revelada ao pecador. Isto é, Deus é justo (tem a justiça) e justifica (revela a justiça) àquele que tem fé em Jesus. Importa particularmente nesse enunciado o termo “é revelada”, pois ele confere um caráter dinâmico ao conceito de justiça de Deus. Na linguagem usual do Novo Testamento “ser revelado” ultrapassa um ensino meramente teórico e tem a conotação de “ser ativado”; ela é revelada pelo fato de se realizar (ou aparecer) transmitindo a justiça de Deus ao que tem fé. A justiça de Deus tem um efeito sobre o que crê produzindo nele justiça.
Assim entendido, o Apóstolo Paulo ao tratar com os gálatas sobre fé, justiça e obediência à Lei (Gl 3.1-14), pôde citar o texto de Habacuc 2.4 (O justo por sua fé viverá), pois, em outras palavras, esse texto diz que o homem pela fé se torna justo, uma vez que nessa dinâmica a sua justiça entra no conceito e conteúdo da justiça de Deus [8], e assim justificado, ele viverá para que a justiça que ele agora vive se torne manifesta.
O tema justiça em Paulo vem muitas vezes acompanhado e/ou em relação mútua com santificação. A correlação dos termos deixa em destaque o entendimento de que aquele que é justo e santo está capacitado e chamado a uma vida íntegra e ética, moralmente falando. Escrevendo aos Coríntios o Apóstolo cita que “Cristo se tornou para nós justiça e santificação” (I Co 1.30). Aos Romanos ele diz que os cristãos devem apresentar os seus membros como escravos da justiça para a santificação (Rm 6.19). E aos Efésios, instruindo como deve ser o procedimento daqueles que recebem o Evangelho, Paulo enfatiza que o novo homem é criado “em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4.24) [9]. Assim, ser justo é ser santo, separado. Porém, percebemos logo que não consiste em ser separado no modo que comumente se entende e se requer que pratique, isto é, no sentido ascético da palavra, puramente reservado e contemplativo. Se o cristão assim procede, a justiça e santidade na forma que Deus requer jamais se efetivarão, pois elas se mostram nas “boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).

A) No contexto da Igreja nascente
Vemos em Atos que a marca distintiva do cristianismo nascente era que não havia separação entre as necessidades materiais ou físicas e necessidades espirituais de uma pessoa (At 2.42; 6.2-5). A instituição dos Diáconos e a qualificação requerida para esse ministério mostram como se empenhavam em cuidar do ser humano como um todo, o que faziam mesmo antes de terem qualquer regulamentação ou orientação especificamente doutrinal ou ministerial como se dela necessitassem ou dependessem para o serviço (At 6.1-6). Por haver nascido no seio do judaísmo, o cristianismo absorveu o modo de pensar, as práticas e conceitos que se baseavam na ética do Decálogo - ainda que evoluídos e reinterpretados pelo judaísmo tardio - e sua aplicação na vida individual e coletiva pois, conforme vimos, para efeito de relacionamentos eles se aplicavam tanto no sentido de lei civil como religiosa abrangendo tanto o indivíduo quanto a coletividade.
Para os primeiros cristãos, a consciência dos deveres para com os menos favorecidos não perturbava a fé, antes a evidenciava visto ser parte integrante dela. Seguindo ainda o modelo dos tempos apostólicos, Inácio de Antioquia diz que a Igreja, antes de qualquer outra pretensão, queria ser fundamentalmente uma fraternidade, ou seja, viver o amor em unidade, ajuda mútua e partilha [10]. Se pudermos tomar como sinônimas fé e vida prática igual a atos de pessoas que foram justificadas e se sentem proclamadores dessa justiça ampla, conforme John Stott, vemos os primeiros cristãos como pessoas engajadas que agiam naturalmente “sem sentir qualquer necessidade de definir por que agiam dessa maneira” [11]. Ao longo dos séculos e mesmo a despeito dos desmandos que houve na Idade Média, sempre houve também pessoas (como Francisco de Assis, Pedro Valdo e outros) que buscaram manter o ideal de justiça do Reino de Deus dentro do ambiente de fé em que viviam.

B) No contexto da Reforma
O pensamento reformador de Lutero, ao contrário de muito que foi dito a seu respeito, tem bases bíblicas que buscam orientar uma prática de fé não alienante, isto é, enraizada na história de modo que fosse promotora de justiça. Tanto foi assim que os que sucederam Lutero em suas muitas expressões sempre se esforçaram por tratar o se humano como tal em nada diminuindo sua dignidade independente de qual fosse a sua origem.
Lutero em seus escritos tratou prontamente de não dissociar a Justificação da prática da justiça. Em primeiro lugar, como não poderia deixar de ser, Lutero trata da radicalidade da mudança que a fé produz, não como uma mera alteração em algumas qualidades e capacidades, mas uma conversão das inclinações produzida pela fé salvadora; uma modificação e um renascer da pessoa mesma. Em suas próprias palavras “Fé [...] é uma obra divina em nós, que nos modifica e faz renascer de Deus [...] transformando-nos em pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças, trazendo consigo o Espírito Santo” [12]. Essa fé não permite uma vida ociosa, mas torna-se, em amor, uma força externamente ativa. E conclui:
Há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas obras a fazer, e sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar. Quem, porém, não realiza tais obras, é pessoa sem fé, que anda às apalpadelas à procura da fé e de boas obras e nem sabe o que é fé nem boas obras [...][13].

C) Nos dias atuais
Penso que em nosso contexto a proclamação da justificação pela fé somente continuará de certa forma inócua, com muitos obstáculos e pronta rejeição se for levada de modo desencarnado, principalmente dentro das igrejas históricas (e descendentes da Reforma) de cunho marcadamente burguês elitista com sua liturgia exageradamente centralizada, restrita e metódica que foge um pouco daquilo que poderíamos chamar de uma igreja do povo. Por outro lado, como se abrir e ser inclusivista sem perder a identidade?
Em meados do século passado Karl Barth apontava três elementos que deveriam ser apreciados de modo crítico nos quais a igreja teria que fundamentar a sua atividade para se tornar relevante: a proclamação deveria ser baseada em amplo conhecimento do seu tempo e contexto histórico-social, o seu conteúdo segundo o padrão da Santa Escritura, e isso tudo sob a orientação do Espírito Santo. A posição de Barth ainda é válida em seus três componentes. Entretanto a observação a ser feita é que ao primeiro deles sempre foi dada menor atenção e mostrado menos interesse. O temor fundamentava-se em que a contextualização do entendimento da Bíblia em cada época, lugar e situação pudesse comprometer a prioridade da Escritura e da tradição confessional [14].
Entendo que o que a igreja precisa refletir é que a tradição confessional não pode estar contra os propósitos do Evangelho e sim ao seu serviço, pois foi com esse propósito que as declarações de fé foram gestadas quando se fizeram necessárias. Shirley Guthrie, Teólogo Norte-americano, comentando sobre as igrejas confessionais reformadas e o correto entendimento de suas declarações fala do seu caráter e intenção visto que elas procedem não de uma autoridade superior ou da burocracia de uma hierarquia eclesiástica, mas do meio dos membros da igreja, que conscientes das necessidades do Evangelho as desenvolveram junto com as autoridades da igreja sob a autoridade das Escrituras [15]. Devemos também frisar que muitas confissões (ou declarações) de fé foram formuladas com aspectos que são restritos à sua condição geográfico-histórica e reconhecidas por todos os cristãos reformados como autoridade provisória, temporária e relativa sujeitas à revisão e correção [16]. É nesse aspecto que entra o nosso trabalho teológico no propósito de elaborar, dentro do entendimento das nossas declarações, as ações da nossa proclamação de modo que venham falar à nossa realidade apresentando resoluções que tragam à luz expressões do Reino de justiça proposto pelo Deus da criação e vivido e enfatizado de forma tão radical por Cristo.
Infelizmente o que temos visto em muitas igrejas é que a contextualização do evangelho de modo a falar mais diretamente às pessoas na situação própria em que vivem tem sido sacrificada ou posta de lado e, em seu lugar - talvez até numa busca de se suprir (e usando um termo bastante comum nos nossos dias) as chamadas necessidades de demanda - muitas igrejas têm sucumbido a movimentos importados, inócuos e totalmente fora da nossa realidade, e oferecido generalidades que levam do nada para lugar nenhum.
Outro tipo de proposta para a vida cristã, e que em nossos dias está intimamente relacionada com o que foi dito anteriormente, é de cunho altamente individualizante e de uma formulação e consistência demasiadamente etérea e que não confronta o cristão com os problemas deste mundo. Em muitos sentidos os ideais apresentados por esse cristianismo são por demais celestiais, o que produz um descaso e apatia com respeito aos problemas que nos cercam gerando uma ojeriza nos crentes em relação ao envolvimento político e consequente inércia na busca por mudanças nas estruturas econômicas e sociais reguladoras da justiça e bem-estar comuns.
Creio que isso seja decorrente de um entendimento que há muito tem adentrado as igrejas e que consiste em um erro gravíssimo: a separação de Salvação e Reino de Deus, dois elementos bíblicos que devem andar juntos pois são, biblicamente falando, sinônimos. Essa separação tende a baratear a natureza da salvação espiritualizando e individualizando-a a tal ponto como se ela fosse apenas uma autotransformação, passaporte pessoal para o paraíso ou experiência mística particular sem qualquer consequência moral e social externa ao seu “detentor” [17].
Acima de todos esses casos, creio que o mal primeiro seja a falta de instrução doutrinária adequada. Particularmente nesse último ponto acredito que uma educação cristã de qualidade se faz necessária para recuperar a doutrina bíblica da salvação na sua totalidade de forma que os que são salvos saibam que são corresponsáveis e trabalhem na promoção da justiça e fraternidade. Há a necessidade de uma educação bíblica, teologicamente fundamentada e consistente que forme cristãos convictos sabedores do seu valor e relevância para a comunidade onde vivem, e cidadãos com sua identidade cristã marcada pelos valores do Reino de Deus, sabedores de que o que crêem e professam, se plenamente praticado, é capaz de mudar situações e transformar contextos e situações de mal em bem.

4 Uma reflexão com bases na Teologia Latino-americana
A proclamação da Justificação pela fé é apaixonante quando a entendemos plenamente, visto que traz conjuntamente um sentido libertário que há muito tem sido esquecido dificultando sua assimilação e aplicação nas comunidades cristãs que vivem situações deploráveis de miséria e injustiças. Infelizmente poucos têm entendido que a nossa prática cristã é herdeira de uma teologia no mínimo imprópria para o nosso tempo e contexto, mas na qual estamos profundamente mergulhados e marcados.
Ao falarmos de Justificação muito do que consideramos justo ou justiça passa por nossas mentes. Creio que isso acontece, na verdade, e até mesmo de modo condicionado, para acentuar de forma antagônica, a visão de injustiça, ou seja, o que temos de mais vivo pelo contexto de anos e anos de dominação histórica, dentro e fora do nosso próprio tempo. Assim, a justiça de Deus - descontextualizada e mal entendida teologicamente - propagada em nossos dias, acaba aparecendo como tábuas de salvação às quais podemos e buscamos desesperadamente nos agarrar para permanecermos vivos. O problema que penso existir nesse aspecto é o que se tem visto em muitas igrejas, isto é, elas acabam criando e transmitindo algumas subculturas que poderíamos, nesse caso específico, nomear de teologia do “salve-se quem puder”. Cada vez mais a preocupação de cada grupo é em cuidar de si mesmos, da sua vida espiritual, e resolver os seus problemas.
A mensagem da justificação pela fé entendida somente como ação direta de Deus, perdão de pecados e/ou libertação de culpas, e reconciliação e paz apenas pessoais não tem muito efeito sobre diversas situações e contextos na América Latina e, Segundo Elsa Tamez, fica defasada em relação à nossa realidade, “pois se fala de perdão de pecados num sentido individual e genérico; em reconciliação também num nível individual e abstrato, e em ausência de participação humana sem nenhum esclarecimento sobre o sentido dessa afirmação” [18]. Fica bastante estranho que nesse contexto não seja enfatizado e nem mesmo mencionado o aspecto forense e libertário dessa justificação. Continuando, Elsa Tamez escreve que
As atitudes ou dúvidas de certos cristãos a respeito dos movimentos populares têm, como pano de fundo, essa discussão de que Deus nos salva pela fé e não pelas obras. É claro que essas afirmações não são falsas: Deus justifica e perdoa o ímpio, reconcilia a humanidade na pessoa de Jesus Cristo, e o faz de maneira completamente gratuita, sem o esforço humano como tal. Mas o abismo existente entre essa doutrina e a realidade de nossas populações deixa que a primeira continue flutuando na ambiguidade, o que, por sua vez, permite sua fácil manipulação [19].
Há uma estrutura dominante e pecaminosa frente a qual os pecados individuais, ainda que não deixem de ser prejudiciais, são incomparáveis. Nesse aspecto, essa justificação abstrata e individual é boa nova mais para o opressor, que obviamente nem sente o seu pecado, que para o oprimido [20].
A justificação como perspectiva de libertação propõe a quebra desses sistemas conclamando os justificados sim, mas ainda não libertos, a lutarem por direitos básicos deixados de ser usufruídos por um entendimento errôneo do propósito de Deus para o seu povo. Walter Altmann diz que esse entendimento individual e abstrato da justificação tem paralisado e deixado desinteressado o povo no aspecto ético, uma vez que o contrário pressupõe cooperação com Deus, mas que é falsa a atribuição dessa culpa à justificação unicamente pela fé proposta por Lutero. Esse entendimento falso resulta de uma interpretação errônea dos escritos de Lutero, pois a ação e prática libertadora de modo algum é vista como cooperação no sentido de se obter a justiça de Deus. Altmann observa ainda que nos escritos do reformador “a história de Jesus pobre e desprezado, mas a favor de nós, dá de antemão uma dimensão que ultrapassa plenamente qualquer enfoque meramente individualizante” [21] e que “a liberdade diante de Deus permite que o compromisso ético seja centrado exclusivamente na necessidade do próximo, em vez de um disfarce para o benefício próprio” [22].
Ao contrário do que muitas vezes é dito ou entendido na doutrina da justificação, vemos em Lutero uma experiência que transcende o meramente eu, ou respostas para problemas existenciais. Ela atingiu proporções históricas trazendo a liberdade que toda uma geração ansiava.
Ao apontar para a livre graça de Deus, Lutero abriu espaço para a libertação das consciências e dos corpos. Na medida em que essa descoberta se desdobrava para o terreno político, com Lutero fazendo eco das queixas da Nação Alemã contra a espoliação eclesiástica interna e externa, e fortalecendo o poder político nacional secular contra a exploração “externa” por parte de Roma, a libertação teve que manifestar-se inevitavelmente também no terreno sócio-político-econômico [23].
Como podemos perceber, esse modo de se viver a nova fé recebida em Cristo propunha que o ser humano fosse livre da alienação do pecado e vivesse em paz, louvor e gratidão a Deus, mas que isso se manifestasse visivelmente em serviço de amor ao seu próximo. Reiteradas vezes, porém, já ficou claro que do ponto vista da práxis, da ação, muito tem ficado a desejar.
No seu livro Novos ministros para uma nova realidade o Pastor Caio Fábio faz algumas considerações que considero úteis e das quais procurei extrair o essencial que exponho a seguir.
A sua proposta para um evangelho mais aberto às causas sociais é que deixemos de lado a visão contemplativa e acomodada imposta pela ignorância, pelo se enclausurar (talvez até natural pela falta de identidade evangélica), e teremos muitos e inúmeros focos de uma nova perspectiva teológica reestruturada e contextualizada nos moldes do século XXI, livres de preconceitos e pensamentos fechados em si mesmo e nos guetos religiosos, pois é de suma importância olhar para nós mesmos e reconhecermos que não estamos produzindo nada e nem mesmo andando, em termos de novas perspectivas teológicas. Um dos motes da reforma era “só Cristo é a encarnação de Deus, sendo Senhor e salvador”. Infelizmente têm-se lido desta forma apenas a partir das tradições das regras hermenêuticas nos laboratórios teológicos e não do ponto de vista de sua totalidade, no verdadeiro sentido de encarnação, de práxis, como foi na vida de Jesus, o único que fez da palavra, carne, vida e história, e isto no chão do mundo, no meio da existência humana. Os termos protestantes e reformadores propunham à Igreja uma nova forma, um novo jeito de se encontrar como Igreja no projeto de Deus, como reformadores da religião, mas também da realidade social, o que ela o foi por algum tempo.
Hoje, apesar de sacralizarmos a cultura da reforma histórica, perdemos a práxis na nossa vida cristã e nos tornamos os protestantes mais acomodados da história. Necessário é que a igreja se desprenda de interesses individualistas e mesquinhos e busque uma posição mais contextualizada e relevante de igreja brasileira, aonde venha contribuir na nossa história sem se vender e se sujeitar a negociatas políticas, onde possa assumir uma posição mais expressiva e, embasada biblicamente, apresentar propostas aos problemas que assolam e dilaceram o nosso país como as questões agrárias, questões de violência, exploração dos trabalhadores, menor abandonado, educação, saúde, ecologia, etc. Será que a nossa teologia sistemática poderia tratar destes assuntos? Enquanto alguns vivem sua teologia de gabinete, milhões de brasileiros vivem tatuados de símbolos cristãos, mas sem relação com o Cristo vivo. Uma estimativa mostra que mais ou menos 2,3 a mais de evangélicos vão às igrejas em comparação a outros segmentos, mas a falta de articulação, de propósitos, de objetividade não nos permite mobilizar um trabalho social expressivo. Não encontramos eco nas igrejas, pois a comunicação é barrada por interesses políticos eclesiásticos, pela mesquinhez, pela inveja, pela incompreensão, pela falta de sensibilidade.
Se [...] formos capazes de assumir o que falarmos e as implicações da nossa ação, não só faremos como teremos o apoio da sociedade. Assim seremos uma igreja que faz frente às injustiças, uma igreja reformada sempre se reformando, protestando e transformando através de uma prática mais humana, verdadeiramente cristã e comprometida com a Palavra de Cristo [24].

Considerações finais
No segundo semestre de 2003, ao desenvolver um Trabalho baseado no Salmo Quinze algumas proposições me chamaram particularmente a atenção. Percebi que no início deste Salmo são feitas duas perguntas retóricas (aquelas que servem apenas para despertar o interrogado, pois se supõe que ele já saiba a resposta) que são o fio condutor da reflexão proposta pelo salmista (Sl 15.1).
Ao longo do trabalho, enquanto, passo a passo, examinava os termos, ficaram ainda mais evidentes (e duras) as verdades expostas nesse escrito, isto é, que as ações de determinada pessoa diante do seu próximo é que medeiam e se tornam condições básicas para que essa pessoa se adentre, conforme o texto, ao santuário, à presença de Iahweh. O fato de viver as condições estipuladas por Deus no relacionamento diário com o próximo constitui um ato de lealdade à lei de Deus cujo foco central em todo o Salmo é a justiça. O Salmo é de um conteúdo totalmente ético-moral e mostra que o culto a Deus tem a sua essência na obediência em viver os preceitos por ele estipulados, visto que obedecer é melhor do que os sacrifícios (I Sm 15.22). Em outras palavras, se tivéssemos que responder quem estaria apto a estar na presença de Deus a resposta seria simples: o que pratica a justiça.
De acordo com o que vimos nesse breve ensaio, concluímos que ao tratar a questão da justificação pela fé devemos estar bastante atentos, tanto em termos de vida cristã quanto pastorais pois, de modo geral, as responsabilidade das quais estamos conscientes se apresentam carregadas de um contexto onde faltam qualificados para a presença de Deus. Estão faltando elementos no culto que oferecemos a ele, elementos que nos tornam aptos a permanecer no seu santo monte e adentrar ao seu santuário.
Entretanto, podemos também nos sentir agradecidos pela consciência despertada e pela possibilidade sempre aberta de renovação e um novo concerto, pois as suas misericórdias não tem fim e renovam-se a cada manhã (Jr 3.22, 23), misericórdias, estas, que a Igreja de Deus precisa urgentemente praticar.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor

Baseado em: Justificação pela fé – como proclamá-la em meio às injustiças? Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na Disciplina de Teologia Sistemática III. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2004.

Referências bibliográficas
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[4] STIGERS, op. cit., p. 1261/4.
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[7] BLAESER, op. cit., p. 602.
[8] BLAESER, op. cit., p. 602/3.
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[13] EBELING, op. cit., p. 130.
[14] GUTHRIE, Shirley C. Sempre se reformando - a fé reformada em um mundo pluralista. São Paulo: Pendão Real, 2000, p. 43/4.
[15] GUTHRIE, op. cit., p. 47/8.
[16] IGREJA PRESBITERIANA (EUA). A natureza confessional da igreja. In: Grandes temas da tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 4/5.
[17] STOTT, op. cit., p. 47/8.
[18] TAMEZ, Elsa. Contra toda condenação – a justificação pela fé, partindo dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 20/2.
[19] TAMEZ, op. cit., p. 20/2.
[20] TAMEZ, op. cit., p. 20/2.
[21] ALTMANN, Walter. Lutero e libertação – releitura de Lutero numa perspectiva Latino-americana. São Paulo: Ática e Sinodal, 1994, p. 87/8.
[22] ALTMANN, op. cit., p. 87/8.
[23] ALTMANN, op. cit., p. 89.
[24] FILHO, Caio Fábio de Araújo. Novos ministros para uma nova realidade. Brasília: Sião Empreendimentos Evangelísticos, 1987, p. 27/9, 30/1.