sexta-feira, 3 de junho de 2016

Paulo aos Romanos - Redação, tradição e questões autorais




Paulo foi pioneiro na tradição epistolar cristã - o bem conhecido Corpus Paulinum - e, a exemplo da tradição judaica, ao longo de sua carreira como apóstolo utilizou amplamente os escritos para ensinar e trazer orientação ética e moral, mas especialmente teológica e espiritual. A diferença está em que, ao contrário da tradição rabínica, Paulo o fazia na forma de cartas e, agora, com um enfoque essencialmente cristológico. Seu alvo era as comunidades que nasciam, obra do seu intenso labor evangelístico-missionário, onde ele se entende como co-missionado por Deus para fundamentar e edificar na fé os povos (At 13.47 cf. Is 49.6) e nisso se empenha de coração e alma apresentando-se sempre sob esse chamado e reivindicando assim, à semelhança dos profetas, sua autoridade apostólica e a validade da sua palavra como Palavra do próprio Deus. Ele é o servo de Cristo, chamado apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus que há muito vem sendo anunciado, e que agora se consumou em Cristo o qual é a promessa, a esperança e o próprio conteúdo do evangelho (Rm 1.1, 2).

A Primeira Carta aos Tessalonicenses (51-52) foi o início da despretensiosa obra literária de Paulo. Ela é reconhecida como a primeira literatura da igreja primitiva, uma atividade que foi muito frutífera no meio cristão até o final do primeiro século. As cartas chegavam a seus destinatários pelas mãos de um irmão ou irmã de confiança que, por vezes, também levavam saudações, recomendações e informações pessoais de quem as enviava (Rm 16.1; Fp 2.25; Ef 4.7). Ao chegar à comunidade a carta era lida na assembleia litúrgica e depois guardada para consulta e uso futuro. Em função do grande benefício que suas instruções traziam, por vezes seu conteúdo também era compartilhado com outras comunidades ou cópias eram feitas com esse propósito [1].

Diferentemente de outras cartas paulinas, a Carta aos Romanos não foi escrita para um propósito específico, por isso nela o apóstolo tem liberdade para tratar de assuntos relacionados não somente aos gentios e judeus de Roma, mas a toda a humanidade. Entretanto não podemos desconsiderar que levando em conta ou não a consciência e expectativa que tinha da abrangência e impacto do conteúdo da carta, Paulo objetivava confirmar na fé a comunidade cristã de Roma (Rm 1.11) e esse é, essencialmente, o assunto que percorre toda a Carta.

Assim como nas outras cartas de Paulo, o conteúdo de Romanos se mostra predominantemente pastoral. No entanto ele se apresenta mais organizado e consistente, elaborado como fruto da reflexão e do amadurecimento do trabalho do apóstolo num período de 25 anos, que se estende de sua conversão até o momento, durante o qual evangelizou toda a região que comporta o “Oriente Médio, Ásia e parte da Europa” [2]. Isso é exatamente o que o apóstolo diz quando afirma que já não tem mais campo nessas regiões (Rm 15.21) e mostra-se decididamente voltado para o Ocidente, para lugares e povos aos quais ainda não foram proclamadas as boas notícias, ou seja, cumprindo uma prerrogativa sua, onde Cristo ainda não tenha sido anunciado (Rm 15.20).

Ao dar por concluído seu trabalho naquelas regiões, Paulo estava de passagem para Jerusalém a fim de entregar o auxílio que os gentios da Macedônia e da Acaia haviam coletado para suprir as necessidades dos santos da Igreja Mãe (Rm 15.25, 26). Tendo chegado o inverno, Paulo deteve-se por três meses possivelmente na casa de Gaio em Corinto - cidade ao sul da Grécia - (Rm 16.23) onde ditou a Carta ao escrevente Tércio [3] antecipando aos cristãos Romanos a sua intenção de visitá-los e, de lá, prosseguir até a Espanha.

Os termos em que Paulo se dirige e o conteúdo bastante consistente esclarecem que a comunidade cristã romana não era de origem recente, mas a predominância numérica, ao menos no momento (57/8 d.C.) parece ser de cristãos gentios que, por excelência, constituem os destinatários dessa carta [4]. O início do cristianismo na capital do império, ainda que não controverso nunca pôde ser precisamente datado e definido pelos estudiosos bíblicos e historiadores. A partir daí dependeremos basicamente das hipóteses mais plausíveis que foram levantadas e consideradas ao longo dos anos.

Dentre as hipóteses mais aceitas é possível que desde os primórdios do cristianismo o evangelho tenha sido levado lenta e gradualmente “pelas várias famílias de fiéis convertidos que, pelos mais diversos motivos, tiveram que ir à capital seja de passagem, seja para fixar residência em tempo mais longo” [5]. Outra possibilidade é de que a semente do evangelho tenha sido levada a Roma por meio dos peregrinos que estiveram em Jerusalém por ocasião da pregação de Pedro no Pentecostes. Conforme o texto de Atos 2.10, 11 esse grupo de romanos constava de judeus e prosélitos e, significativamente, é o único grupo europeu citado expressamente entre os peregrinos [6].

O que fica evidente, entretanto é que, assim como em outras localidades do Império Romano, o cristianismo tenha se iniciado dentro da sinagoga e nesse ambiente ele foi progressivamente gerando desconforto e consequentes discórdias entre os cristãos e os judaizantes radicais até chegar à sua tensão máxima e se tornar, aos olhos do imperador, um caso de ordem pública conforme posteriormente relatou um renomado escritor romano:
Suetônio afirma textualmente ter o imperador Cláudio expulsado “os judeus de Roma que, instigados por Cresto, não cessavam de fazer agitação” (Vita Claudii 25,4). Tem-se por certo que Cresto, ao qual se refere Suetônio é, na verdade, Cristo que, pregado entre os judeus, gerava as brigas e divisões. Parece, pois, que a partir de 49 d.C. os cristãos de Roma separaram-se definitivamente do seu berço judaico, a sinagoga  [7].
Percebemos então a dificuldade de Paulo em escrever para uma comunidade que não tinha fundado, que não conhecia, e da qual não era conhecido pessoalmente. Ele não havia ainda, até então, tido contato com a comunidade cristã de Roma e deixa isso claro quando escreve que deseja muito conhecê-los expondo que muitas vezes se propôs a isso (Rm 1.13). Podemos apenas presumir que Paulo não era totalmente ignorante em relação aos Romanos pois, em certa ocasião, quando estava trabalhando em Corinto, Paulo conheceu Priscila e Áquila, um casal judeu-cristão e antigos residentes da capital que possivelmente pormenorizaram ao apóstolo a condição dos cristãos Romanos [8]. É provável ainda que em suas viagens tenha ouvido falar deles visto que em muitas partes da carta elogia a sua fé (Rm 1.8, 11-13; 15.23). Quanto a eles, se tinham alguma ideia de quem era Paulo certamente esta não era de todo positiva porque uma clara defesa em relação a sua pessoa e ministério é feita pelo apóstolo no capítulo 3. É possível que seus opositores do círculo rabínico de Jerusalém tenham disseminado acusações que acabaram chegando a Roma e que previamente necessitavam ser esclarecidas.

Quando Paulo escreveu a essa comunidade ela era composta na sua maioria por gentios, mas os judeus já se faziam fortemente presentes uma vez que, com a morte de Cláudio (54 d.C.) e a ascensão de Nero ao poder, os que anteriormente tinham sido expulsos já haviam recebido permissão para voltar [9]. Assim Paulo sistematiza seu pensamento e apresenta o que ele considera o “seu Evangelho” com ensinos que esclarecem a gentios e judeus a nova condição daqueles que pela fé são justificados em Cristo. Em sua didática pormenorizada busca esclarecer a nova relação entre os judeus, a Lei de Moisés e Cristo, da mesma forma com respeito aos gentios bem como de uns para com os outros.

Desfeito o problema e ganha a confiança da comunidade como um todo, Paulo espera que, depois de oportuna estada com eles, consiga o seu apoio para a missão espanhola. Segundo Daniel Patte, ao encerrar seu trabalho na parte oriental e estabelecer novos projetos no ocidente é possível que Paulo tenha considerado a igreja de Roma como a base a partir da qual haveria de empreender essa nova atividade missionária. Entretanto, adverte ele, não estamos autorizados a concluir nem afirmar que o objetivo da carta era meramente interesseiro, pois pode ser que Paulo tivesse conhecimento da situação da comunidade e quisesse tratar de alguns problemas como inúmeras vezes já havia feito no seu antigo campo de trabalho [10].

Devido à riqueza de expressões e formulações próprias do Corpus Paulinum, com exceção de algumas questões do capítulo 16 a Carta aos Romanos não apresenta problemas de autenticidade literária. Utilizando como premissa essas expressões características de Paulo, Charles Perrot em seu comentário esclarece muitos tópicos difíceis com base em escritos co-substanciais de outras cartas paulinas de origem indiscutível [11]. Seguindo a mesma linha de pensamento Günter Bornkamm também admite ser de autoria de Paulo a totalidade de Romanos. Ele afirma que
Um número considerável de cartas do Novo Testamento, atribuídas a Paulo, foi inquestionavelmente escritos por ele, ou melhor, ditado por ele. Entre tais estão as cartas maiores aos Coríntios e Romanos, como também as menores: Primeira aos Tessalonicenses, Gálatas e Filipenses, e a breve carta a Filêmon [12].
Em se tratando de unidade textual, a Carta aos Romanos também não apresenta problemas. A única dificuldade de coesão que merece observação encontra-se novamente no capítulo 16 (com a possível exceção da doxologia dos versículos 25-27), considerado por alguns estudiosos como um texto à parte escrito por Paulo, mas endereçado inicialmente aos cristãos de Éfeso e, mais tarde, de algum modo adicionado a Romanos. Os argumentos principais dessa tese consistem em que a Carta parece terminar em 15.33 com a conhecida bênção final. Uma contra argumentação esclarece que um longo postscriptum após o término de um escrito não é intrinsecamente improvável. Outro argumento a favor do acréscimo de Rm 16 é que soa estranho nesse texto Paulo saudar vinte e seis pessoas em uma comunidade que não fundou e que até o momento não conhece. Não temos meios para saber quantos amigos o apóstolo poderia ter tido em Roma. Entretanto seria de mais fino tato Paulo ter destacado e saudado aos que eram seus amigos pessoais nessa comunidade desconhecida do que saudar apenas a alguns em Éfeso onde era conhecido de todos, pois exerceu ali um longo ministério [13].

Há ainda outros argumentos tanto a favor quanto contra essa tese, porém irrelevantes para o momento. De qualquer forma, para fins de pesquisa, é interessante considerar o capítulo 16 como parte integrante da Carta aos Romanos.



Valdenir Soares - Teólogo e Professor



* Tópico 2.4 (Redação, tradição e questões autorais). Parte da Análise Literária de: SOARES, Valdenir. Uma fé viva e eficaz: propostas para a vida cristã a partir de Romanos 1.7-17. Trabalho de Conclusão de Curso. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2004.


Referências bibliográficas
[1] HALE, Broadus David. Introdução ao estudo do Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1986, p. 194.

[2] BORTOLINI, José. Como ler a Carta aos Romanos – o evangelho é a força de Deus que salva. São Paulo: Paulus, 1997, p. 7/8.

[3] TEB - A Bíblia de Tradução Ecumênica. São Paulo: Loyola, 1994, p. 2165/6.

[4] BRUCE, Frederick Fyvie. Romanos – introdução e comentário. 4ª ed. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1986, p. 14.

[5] WEGNER, Uwe. Aspectos socioeconômicos na Carta aos Romanos. In: Sociologia das comunidades paulinas.  Petrópolis/São Bernardo do Campo/São Leopoldo: Vozes, Imprensa Metodista e Sinodal, 1990, p. 44.

[6] BRUCE, op. cit., p. 14/5.

[7] WEGNER, op. cit., p. 43.

[8] FRANZMANN, Martin H. A Carta aos Romanos. Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia, 1972, p. 9.

[9] HALE, op. cit., p. 208.

[10] PATTE, Daniel. Paulo, sua fé e a força do Evangelho: introdução estrutural às cartas de São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 336.

[11] PERROT, Charles. Epístola aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 22.

[12] BORNKAMM, Günter. Bíblia Novo Testamento - introdução aos seus escritos no quadro da história do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 73.
[13] FRANZMANN, op. cit., p. 11.

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