segunda-feira, 25 de julho de 2016

O mundo político, social e religioso no contexto da Carta aos Romanos


O período do serviço apostólico de Paulo situa-se entre os anos 32 e 67 onde ocorreram os eventos comumente chamados de conversão - com o imediato início do anúncio da nova fé cristã -, e martírio, na cidade de Roma, após 25 anos de intenso trabalho missionário e não menos intenso e profícuo trabalho literário nos quais nos legou farta literatura, uma teologia solidamente construída e sistematizada, e um exemplo de vida e dedicação ao serviço e Reino de Deus como nunca se soube até os nossos dias e dificilmente se verá presente ou futuramente.
Durante esse tempo o Império Romano teve como seus governantes máximos quatro nomes sob os quais, com maior ou menor crueldade ou benevolência, estavam os destinos das inúmeras etnias conquistadas, que juntamente com gregos e romanos perfaziam milhões de pessoas espalhadas por vastas regiões territoriais. Esses territórios eram divididos em províncias que por sua vez eram postas sob a autoridade de governadores estabelecidos por Roma e que tinham por competência os assuntos militares, jurídicos e financeiros [1]. Inicialmente esses governantes eram chamados de prefeitos (do latim praefectus), ou éparchos em grego e, posteriormente, procurador (do latim procurator); ou epítropos - tutor, administrador no grego da época. Nas províncias os povos conquistados eram distribuídos em classes sociais de acordo com o seu poder financeiro ou quantidade de bens ou, ainda, seu grau de conhecimento e/ou influência junto a algum governador provincial, procurador ou mesmo ao próprio imperador.
Neste período temos, respectivamente e em ordem de ascensão, quatro imperadores:
Tibério (14-37) [2] – imperador enérgico e resoluto, bastante dedicado às províncias e eficiente em questões de ordem pública e segurança. Foi imperador por vinte e três anos e lembrado com certo exagero pelo escritor Fílon de Alexandria como aquele que em cujo governo “não deixou a menor faísca de guerra se acender” em seus domínios [3];
Ao contrário de Tibério, Gaio Calígula (37-41) seu sucessor [4] foi considerado, em termos de ordem e segurança, um dirigente fraco pois durante o seu governo houve em Alexandria (38) um tumulto violento entre os judeus residentes naquela cidade e a população periférica que pedia ao prefeito local, Ávilo Flaco, o seu rebaixamento a forasteiros sem direito de domicílio. Em outra ocasião ordenou que o Templo de Jerusalém fosse transformado em um santuário imperial onde seria erigida uma estátua sua, fato que não se consumou, pois Calígula foi assassinado em janeiro de 41 [5];
Cláudio (41-54) foi considerado um dirigente pacificador, extremamente humano e de muito bom senso principalmente em relação aos atos anteriores de Calígula contra os judeus [6]. Porém, desde o início de seu governo os advertiu de que a ordem e a convivência pacífica seriam critérios básicos para a manutenção de seus privilégios os quais começaram a enfraquecer ainda no primeiro ano desse imperador e foram, pouco a pouco, sendo diluídos culminando com a expulsão de muitos deles em 49 [7];
Nero, sucessor de Claudio, ao se tornar imperador (54-68) foi visto por muitos como alguém desinteressado na ordem e preservação do domínio imperial. Na verdade, não era Nero quem governava e sim seu mestre Sêneca e enquanto pôs em prática suas teorias, tanto a capital quanto o império estiveram tranquilos e prósperos [8]. Pouco depois começou a voltar-se para outros conselheiros e a adquirir excentrismos de tal modo que as suas manias foram comparadas - não sem temor, e particularmente pelos judeus - às de Calígula [9]. A partir de então as instabilidades começaram a gerar dificuldades na resolução de problemas que sobrevinham ao império já bastante desgastado tornando-o ainda mais desprestigiado aos olhos do Senado e de todo o povo.
Quando Paulo começou a empreender as primeiras perseguições aos chamados seguidores da nova seita do Caminho - por esse tempo, uma em meio a tantas outras expressões religiosas que então fervilhavam entre a mista população do vasto Império Romano -, Tibério estava no seu décimo nono ano de governo e vivia-se o ano 33 [10] do tempo que viria a ser denominado pelos próprios romanos Anno Domini.
Em 189 a.C., quando ainda era uma cidade-estado, Roma conquistou todo o mediterrâneo submetendo os povos a tributários, que desde então sustentavam o agora Império Romano. Com as rápidas transformações nas atividades produtivas e nas estruturas políticas e sociais a demanda econômica havia aumentado muito e intensificada a carga de tributos, de forma que tornavam os conquistados em massas espoliadas, de muitas formas empobrecidas e sem direitos, que se prestavam ao trabalho escravo [11].
Sob a conhecida Pax Romana o império se desenvolveu econômica e estruturalmente vindo a construir um notável sistema de transporte rodoviário e marítimo livre de ladrões e piratas por onde grande fluxo de capital era negociado. Apesar de a economia ainda ser essencialmente agrícola, os governadores romanos dedicaram maior atenção ao meio urbano especialmente agora que as cidades se tornavam cada vez mais complexas. Atraídos por essas facilidades e pelas imaginárias expectativas próprias que o meio por ora oferecia, Roma cresceu vertiginosamente devido à diversidade de segmentos que a procuravam.
Muitos desses segmentos conservavam, nas particulares formas de cultuarem suas divindades, lembranças de suas raízes pátrias que os unia em agremiações de certo modo distintas e estruturadas. A difícil condição desses grupos emigrantes e na maioria estrangeiros considerados residentes não-cidadãos não ficava alheia ao governo central, pois viviam sob tensão entre si e era necessária apenas uma pequena faísca para que uma situação adversa se instalasse.
Wayne Meeks nos informa que dentre esses segmentos étnicos alguns que se destacavam por influência e/ou quantidade buscavam até mesmo privilégios, mas pouco conseguiam visto que uma abertura poderia servir de prerrogativa para futuras reivindicações de outros. Dessa forma, tanto os residentes quanto os cidadãos gregos e romanos estavam sob o mesmo olhar, mesmas regras e disciplinas impostas pelo governo para que não houvesse inconvenientes entre eles. Meeks acrescenta que
Dois ou até três grupos organizados de residentes deviam existir lado a lado, ou então, os cidadãos gregos e romanos precisavam estar plenamente integrados entre si. Entre os residentes estrangeiros, que conviviam com os cidadãos romanos e com os cidadãos da própria cidade, um grupo ocupava posição especial. Os judeus normalmente se achavam organizados como comunidade distinta governada por suas leis e instituições próprias e com frequência reivindicavam, às vezes com sucesso, igualdade com os cidadãos romanos [12].
Na ocasião da Carta de Paulo aos Romanos, Nero estava no seu terceiro ano de governo e uma das questões que não se podia ignorar na administração imperial era a questão religiosa restaurada pelo primeiro imperador no ano 31 a.C. Os dois últimos séculos do antigo regime tinham sido marcados por guerras sangrentas e, com exceção do culto do lar, a religião havia caído em total descrédito sendo considerada como uma das principais causas da ruína e falência na Roma Antiga [13].
Com a morte de Marco Antonio e o fim do Segundo Triunvirato (e também da Antiga República), Caio Otávio se torna imperador e reivindica o nome de Augustus. Posteriormente restaura a paz chamada então de Pax Augusta e absorve também a antiga função religiosa de Sumo Pontífice (Pontifex Maximus) que cabia aos antigos sacerdotes. Ao perceber-se com tão grande poder César Augusto instituiu o culto de Roma e do imperador e restaurou o antigo politeísmo, desde que as divindades fossem admitidas pelo Estado, incentivando assim o retorno às práticas religiosas. Aos imperadores, a quem se devia lealdade ilimitada, logo foram atribuídas características de deuses e os seus cultos usados como meios de dominação ideológica e promoção pessoal.
Igualando a seus antecessores Nero seguia fielmente o modelo deixado. Porém, com exceção do exigido culto ao soberano, não interferia nas administrações locais; o Estado se contentava em não haver organizações ou associações de caráter subversivo dentro de seus limites. Quanto às comunidades, nenhuma delas com suas religiões distintas pretendia ir além de sua esfera limitada ou tornar-se particularmente perigosa para o Estado [14].
Entre os vários povos do império os judeus que haviam chegado ainda na Era Helênica já tinham se espalhado alcançando também Roma onde estabeleceram várias sinagogas. Por seus preceitos, eram fechados, exclusivistas, e ao contrário das outras religiões do império o seu culto não oferecia nenhuma atração fantasiosa sendo, por isso, e pelas exigências que apresentava, considerado ridículo e desprezível. Além disso, a sua ausência na cerimônia oficial devotada ao imperador era mal vista e tida como ato de deslealdade.
Contrariamente ao judaísmo, que apesar das desconfianças era respeitado por sua antiguidade, os cristãos eram mal vistos não apenas por se recusarem a prestar o culto ao imperador, mas como associações religiosas não-licenciadas (collegia illicita) que praticavam, segundo comentários, atos de canibalismo em função do não entendimento do sacramento cristão da ceia comunitária.
Nesse contexto de tantas dificuldades, injustiças e incertezas a mensagem cristã de amor desinteressado, a sua história de um Deus que se encarna tornando-se salvador, e a proclamação de uma firme esperança de vida após a morte foi se tornando conhecida não apenas por sua ética diferenciada e exigente, mas também como opção àqueles que buscavam algo mais do que o meramente ritual. Somado às interpretações do cumprimento da redenção anunciada por séculos de profecia hebraica, o anúncio do Evangelho rapidamente atraiu homens, mulheres e crianças, pobres e desprivilegiados, na esperança de que a promessa da segunda vinda de Cristo e o estabelecimento do seu Reino de justiça na terra se cumprisse em breve [15].

Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Comentários e/ou observações: valdenirtre@gmail.com

* Texto baseado nos tópicos 3.1 e 3.2 (Aspectos Sociopolíticos e Aspectos sociorreligioso). Parte da Análise Sócio-histórica de: SOARES, Valdenir. Uma fé viva e eficaz: propostas para a vida cristã a partir de Romanos 1.7-17. Trabalho de Conclusão de Curso. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2004.

Referências bibliográficas
[1] PAUL, André. O judaísmo tardio - história política. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 53.
[2] PAUL, op. cit., p. 55.
[3] MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo - biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 97.
[4] PAUL, op. cit., p. 55.
[5] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 28, 151/2.
[6] GOODMAN, Martin. A classe dirigente da Judéia - as origens da revolta judaica contra Roma 66-70 d.C. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 16.
[7] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 152.
[8] MONTANELLI, Indro. Historia de Roma. São Paulo: BRASA, 1961, p. 273.
[9] GOODMAN, op. cit., p. 27, 181.
[10] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 23.
[11] MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminho das civilizações - da Pré-História aos dias atuais. São Paulo: Atual, 1993, p. 73/4.
[12] MEEKS, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos - o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 28.
[13] GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 61.
[14] BALSDON, J. P. V. D. (Org.). O mundo Romano. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 189.
[15] BALSDON, op. cit., p. 194/5.

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