sábado, 19 de novembro de 2016

A katályma



José, o carpinteiro, teria que ir recensear-se em Belém de onde era oriundo. Junto a ele, montada em um burro, viajava Maria em avançado estado de gravidez, enfrentando uma viagem fatigante de mais de 150 km desde Nazaré. Seu esposo se sentiu mais tranquilo quando, por fim, entraram na cidade de sua família, pois trazia consigo a esperança de encontrar logo um albergue, tendo em conta a condição em que se achava sua mulher. Porém, andaram de casa em casa, e a todas achou cheia de gente. Acontece que, por causa do censo, muitos belemitas regressaram desde os diversos pontos do país para renovar sua inscrição nos cadastros romanos. Em vão buscou um lugar onde acomodar Maria para que pudesse dar à luz a seu filho; não o encontrou. De repente viu uma pousada. Ali se conseguiria seguramente alojamento. Porém, a decepção foi enorme quando o proprietário lhe informou que não tinha nenhum canto disponível. Por fim, José com Maria, que se movia pesadamente e que já sentia as dores de parto, se dirigiu a uma gruta que servia de estábulo para os animais e terminaram aconchegando-se dentro. Na solidão daquela gruta, Maria deu à luz o seu primogênito, e o pôs logo em uma manjedoura, isto é, no recipiente onde se coloca comida para os animais, que por sua forma alargada lhe serviu de berço. Porque os homens a quem viria salvar lhe fecharam as portas, o Filho de Deus terminou por nascer em um estábulo.

O Evangelho relata isso?
Porém, esta narração assim contada, e que temos ouvido e meditado inúmeras vezes, especialmente ao chegar o Natal, levanta dois grandes problemas. O primeiro é que não concorda exatamente com o Evangelho de São Lucas, do qual foi tomada. Com efeito, este em nenhuma parte diz que Maria havia chegado a Belém quase a ponto de dar a luz. O texto só afirma: “E aconteceu que, estando eles ali se completaram os dias em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). Tampouco conta o Evangelho que o casal haja andado de casa em casa e de pousada em pousada buscando alojamento. Esta é uma simples dedução pelo fato inexplicado de que Maria tenha dado à luz em uma gruta destinada para refúgio dos animais, e porque se afirma que “não havia para eles lugar na hospedaria” (Lc 2.7).

A imprudência de José
O segundo inconveniente é a grande quantidade de perguntas que levanta: a) Se José vinha para uma breve prática administrativa, e tendo em conta que naquela época não era obrigatória à mulher apresentar-se no despacho do censo - porque bastava o chefe de família -, para que levaria Maria até Belém? b) Como foi tão imprudente de esperar até a última hora e viajar quando ela estava quase a ponto de dar à luz? c) Como homem justo e prevenido que era não, foi capaz de prover um lugar mais decente para o parto de sua esposa, sabendo que o que viria ao mundo era nada menos que o Filho de Deus? d) Se ele era de Belém, e voltava à sua própria cidade, como é que não tinha uma casa onde se alojar? e) Considerando que para os povos do oriente a hospitalidade era um dever sagrado, no qual estava em jogo a própria honra, não parece estranho que ninguém abriria as portas a José, nem sequer um parente, mesmo vendo o estado de Maria?

E tudo por uma palavra
Assim colocadas as coisas, estas perguntas indicam de imediato que estamos em um beco sem saída. Porém, todo o problema reside em que temos feito uma leitura equivocada do Evangelho à qual temos acrescentado, muito de imaginação sobre o que o texto conta. A culpa está em uma palavra que foi mal traduzida e criou a confusão, e assim estimulou a fantasia de gerações de leitores. Trata-se do vocábulo grego kata,luma (Katályma), que a maioria das Bíblias traduz por hospedaria, pousada, albergue. Ao traduzir desse modo esta palavra, a frase do Evangelho diz que “não havia para eles lugar na hospedaria”. Porém no grego bíblico esta palavra tem também - e primariamente - outro significado, que é o de aposento, quarto, peça de uma casa, ou seja, uma parte especial da casa, mais bem separada, ou reservada.

A katályma
O que era realmente a katályma, na qual não havia lugar para eles? Para entender bem o sentido do Evangelho de Lucas devemos nos situar no ambiente da Palestina onde as casas não constavam de vários quartos como podem ter as nossas atualmente. Com a precariedade da edificação de então, as residências tinham tão só uma peça central onde havia de tudo: armários, ferramentas, assentos, despensas, cozinha. E onde, chegada a noite, se estendiam as esteiras para o repouso noturno, cada um em seu lugar preferido.
Esta peça central era, pois, o pequeno mundo doméstico ao redor do qual girava toda a vida do lar e o movimento das pessoas, mais ou menos como ainda são os lares de muitos de nossos ambientes rurais. Porém, além da sala principal, as casa tinham também algum ambiente menor, reservado, às vezes empregado como depósito ou para eventuais hóspedes, com separadores anexados para maior privacidade.

O quarto das parturientes
Este quartinho anexado servia, sobretudo, para quando na casa havia alguma parturiente. Porque em Israel, quando uma mulher dava à luz um filho ficava impura durante 40 ou 80 dias, segundo fosse menino ou menina, por causa da perda de sangue que havia sofrido. A Lei judaica prescrevia que os objetos que ela tocava, a cama onde repousava - inclusive qualquer lugar onde houvesse sentado - ficavam impuros. E se alguém tocasse a parturiente, ou entrasse em contato com algum utensílio tocado por ela, também ficava impuro (Lv 15.19-24). E para os judeus, uma pessoa impura ficava isolada socialmente, diminuída (desacreditada) diante de Deus e dos demais; não podia ir ao Templo, nem relacionar-se com ninguém até que terminassem os ritos de purificação que eram complicados e levavam seu tempo. Daí as precauções que se tomavam em cada parto, e o por quê de se fazer residir na katályma, ou seja, em um quarto separado da casa, e não no ambiente comum, a que acabava de ser mãe.

Assim tudo é mais claro
Agora suponhamos por um momento que o evangelista Lucas quando escreveu que não havia lugar na katályma, não estava pensando em uma hospedaria, como traduzem normalmente as Bíblias, mas sim em uma peça particular de uma casa, que é a primeira possibilidade que proporciona esta palavra grega. Então, de imediato, se clareia todas as perguntas, o texto evangélico se torna mais coerente, e a figura de José volta a adquirir confiança como pai responsável e esposo prudente. Comecemos, pois, a ler agora todo o relato do Evangelho à luz desta nova explicação, sem interpretações arbitrárias nem acréscimos espúrios e fantasiosos.

Com uma mulher em estado interessante
Havendo se inteirado de que o imperador de Roma havia ordenado um censo, José, que momentaneamente residia na Galiléia, decidiu voltar a Belém, visto que era dali (Lc 2.4). O mais natural teria sido deixar na Galiléia a sua jovem esposa já que não era necessário que comparecesse diante das autoridades do censo. Entretanto, mesmo apesar da condição em que se encontrava, decidiu levá-la consigo, pois pensa em radicar-se definitivamente em Belém, o que é lógico, tendo-se em conta que ele era desta cidade e que aqui tinha seus parentes, sua casa e suas posses. Tendo ele domicílio em Belém, então é justo pensar que traria Maria para que se estabelecesse em sua própria casa e ali vivessem. Para isso se puseram em marcha com tempo, com a prudência dos justos, e para evitar as dificuldades do último momento. Dadas as circunstâncias, a viajem deve ter demorado uns dez dias pelo caminho longo e acidentado de então, porém, vários meses antes do parto.

A intimidade de uma gruta
Neste ponto afirma o Evangelho que “enquanto eles estavam ali, se completaram os dias em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). No entanto, era a época do censo e muitos belemitas que tinham vindo de todas as partes enchiam a cidade instalados nas hospedarias e em todas as casas particulares. Também Maria e José receberam e alojaram em sua casa muitos parentes e amigos, de modo que ficou cheia.
Acontece, então, que chega a hora do parto e ambos percebem que não havia lugar onde Maria poderia dar à luz digna e discretamente, sem incomodar e sem ser incomodada, e sobretudo sem transformar em impuros todos os que estavam na casa. Ou seja, não havia lugar nem mesmo na peça separada da casa, na katályma. Por isso, sem ofender a nenhum de seus parentes, se retiraram à gruta-estábulo que todas as casas de Belém tinham (e ainda têm), onde acolhiam os animais. E ali, em uma gruta de sua própria casa, adaptada como refúgio e arrumada por José da melhor forma possível, pouco depois Maria deu à luz a um menino. As demais mulheres a ajudaram a envolvê-lo em panos. E como berço tomaram uma pequena manjedoura (caixão onde se punha o alimento para os animais domésticos), o limparam bem, lhe puseram palha nova e cobriram com panos. É isto o que se deduz se lemos o texto que, corretamente traduzido, agora diz: “E deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura, porque não tinham lugar na sala” (Lc 2.7).

Para eles, não havia lugar
Por isso, na continuação o evangelista Lucas - sempre preciso em seus detalhes - esclarece que não havia lugar, porém só “para eles”. Isto indica que para todos os outros tinha um lugar qualquer para descansar, já que as camas na Palestina não eram senão uma esteira estendida no solo. Porém, para eles, que deviam observar as prescrições da Lei judaica referentes à impureza ritual, para eles não. Poderíamos acrescentar ainda: para eles, tão determinados a não incomodar, para eles, tão delicados e tão persuadidos do mistério que guardavam zelosamente; para eles não haveria lugar no meio do vaivém, do barulho e da mistura que reinava em toda a casa.
Concluímos, então, que foi em uma das grutas destinadas para estábulo da casa de família de José em Belém, o lugar onde aconteceu o nascimento do Messias. Concluímos que no grego de Lucas a palavra katályma significa o quarto (peça) separado de uma residência, e não uma hospedaria ou pousada, o que é confirmado pelo episódio da última ceia. Em Lucas 22.11, quando Jesus dá as instruções a Pedro e João para irem até uma casa da cidade e preparar a Páscoa, lhes indica: “E direis ao pai de família da casa: O mestre te diz: Onde está o aposento (katályma) em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?” Ou seja, Jesus não celebrou a última ceia em nenhuma hospedaria, mas sim em uma casa, cujo dono lhe preparou uma sala reservada, para ele e seus apóstolos.

Mais provas
E o confirma ainda a parábola do bom samaritano. Quando Lucas relata que aquele levou ao ferido até uma hospedaria, usa a palavra pandocei/on “pandokéion” para referir-se a ela, e não katályma. Se, portanto, quando Lucas usa a palavra katályma não pensa em uma pousada, mas sim em uma sala reservada de uma casa, é forçoso concluir que no relato de Maria e José, essa palavra devia ter tal significado. Finalmente, a tradição arqueológica compartilha deste mesmo parecer. Com efeito, na cidade de Belém ainda existe a gruta que durante séculos tem sido identificada por peregrinos como a do nascimento de Jesus. E todos os estudos arqueológicos que se realizaram em torno dela revelam que não se trata de uma gruta qualquer, perdida nas curvas de uma estrada palestina, mas sim que era incorporada a uma moradia como recinto estável. Em lugar daquela casa, hoje se tem construída uma majestosa basílica em comemoração a ela.

Um José como Deus manda
Algumas igrejas, quando chega o Natal costumam teatralizar o episódio do nascimento com cenários infantis nos quais Maria e José, depois de serem rejeitados (repelidos) em vários lugares, terminam amparando-se em um estábulo, onde pode então nascer o menino. Este quadro com a chegada em Belém à última hora e de noite, batendo desorientadamente à porta das casas e pousadas, e recebendo um não em todas as partes, pinta a figura de um pobre José inconsciente, negligente, e cuja incompetência quase causa um péssimo parto de sua esposa. Porém, na realidade trata-se de uma triste deformação. José de Nazaré foi um verdadeiro pai para Jesus e um autêntico esposo para Maria, e seu papel foi essencial no plano de Deus.

O ensinamento que deixou
Para nascer, Jesus Cristo tinha preparado sua habitação, seu teto, sua casa. Eram suas. Seu pai legal, José, as havia aprontado para quando ele viesse a este mundo. Porém, por razões circunstanciais, no momento de seu nascimento havia outros que necessitavam dela. Então José, com um gesto decidido, determinou deixar o lugar previsto e descer ao tosco estábulo. Dizem os psicólogos que as experiências pré-natais influenciam de modo determinante a vida das crianças. Seja como for, este evento mostra que desde o princípio a educação que receberia Jesus em sua casa haveria de marcá-lo para sempre. Jesus não nasceu pobre simplesmente por que as circunstâncias assim o exigiram, mas sim por uma opção livre de José. E quando cresceu decidiu abraçar perpetuamente a vida simples, à qual foi fiel até o fim. Viveu pobre, compartilhou o que tinha, andou rodeado dos mais necessitados, comeu do que lhe ofereciam, e morreu na mais absoluta simplicidade; jamais exigiu nada para si mesmo, pois não queria utilizar algo que a outros poderia fazer falta. Até o fim de sua vida foi sempre visto aplicando o princípio de que se alguém necessitava de sua habitação ele, voluntariamente, poderia baixar ao estábulo, afinal, seu pai José lhe havia ensinado.


La katályma - Signos de Vida: Quito, Equador, 2002.
Tradução: Valdenir Soares
Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Comentários e/ou observações: valdenirtre@gmail.com

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